Negras e negros de olhos puxados
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 28 de Maio de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os grandes momentos de transformação normalmente nos dão espaço para hipóteses afoitas. A que tenho para compartilhar hoje é a de que o mais novo fenômeno da raça humana será o surgimento das pessoas negras de olhos achinesados. O que me faz projetar essa novidade são as movimentações da China com relação à África negra, como quem mexe peças em tabuleiro de War, o popular jogo da estratégia. Se é a vez da China de jogar na nova ordem geopolítica global, desconfio que a carta-objetivo dos chineses para a rodada deve ser “conquistar a África”.
O panorama mundial aponta uma mudança das relações euro-africanas para sino-africanas. A China está explorando petróleo em vários países africanos, aos quais oferece apoio para obras de infra-estrutura, desenvolvimento de serviços básicos e vendas de armas. Angola, Costa do Marfim, Chade, Nigéria, Sudão e Zâmbia são países da rota chinesa, quer beneficiados diretamente, quer beneficiados com obras de integração, a exemplo da construção de estrutura logística como a estrada de ferro para o escoamento de cobre da Zâmbia aos portos de Angola.
Esses acontecimentos nos levam a refletir sobre a quantas andam o humanismo socialista e a questão do sentido do homem, do significado da sua vida e de seu futuro, considerando a China como um país dirigido por partido único, de inspiração comunista e inclinação neocapitalista. O dilema chinês não é novo. No final da década de 1960, o movimento comunista internacional vivia o drama da cisão chinesa. O modelo socialista da China tinha especificidades próprias, inspiradas na originalidade da sua história e da sua estrutura social e cultural.
Os estágios definidos pelos modos de produção, organizados na racionalidade da sociedade européia como comuna primitiva, escravatura, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo, não se encaixavam nos motivos que teriam levado os chineses a sair diretamente da fase pré-capitalista para o socialismo. Ao ser confrontada com a realidade chinesa, essa teoria perdia o seu caráter de universalidade. A China era vista como uma civilização que ao desagregar suas comunas primitivas derivou para uma sociedade de classes em parâmetros capazes de comportar o Estado e uma forma de exploração que prescindia da existência da propriedade privada.
A discussão produzia a incógnita de como construir o socialismo na África e na Ásia, terras tão distintas das características que inspiraram os fundamentos da dialética do capital e a necessidade evolutiva do socialismo. Os países europeus colonizadores tinham destruído as relações sociais e explorado à exaustão os recursos naturais nas plagas asiáticas e africanas, fomentando guerras intertribais, patrocinando massacres e, quando a situação ficou insuportável, largaram as gentes africanas à própria sorte.
Teses e mais teses foram aventadas no sentido de criar assemelhamentos entre os modelos de produção ocidental e oriental. As mais lúcidas pareciam ser aquelas que tratavam da aproximação do modo de produção preponderante nas regiões mais desenvolvidas da África negra do modelo de produção asiático. Se essa aproximação consistiria em um destino, isso nenhuma delas dava para prever.
Hoje, olhando para o passado, dá para notar que a primeira globalização veio do oriente com a pólvora, a imprensa e o macarrão. Mil anos se passaram e a China força o pêndulo da economia global, voltando a pensar em saltar a muralha do próprio sistema que a manteve fechada em si por tantos séculos. “A grande inspiração para a nova imagem da China é o almirante Zheng He, cujas viagens marítimas no início do século XV em muito superaram a de Colombo e Vasco da Gama, levando embaixadores da dinastia Ming a paragens tão distantes como o litoral oriental da África” (KHANNA, Parag.O segundo mundo. Intrínseca, RJ, p. 390, 2008). O autor afirma que se não fora a decisão do imperador Zhou Gaozhi de acabar com as onerosas viagens ao exterior, a China teria sido a maior superpotência da era das navegações.
Não dá para saber direito em que escala colocar tais comparações, mas, tenham a dimensão que tiver, o certo é que os chineses parecem ter aberto os olhos para a oportunidade deixada para trás há cinco séculos e voltam a se movimentar em direção à África negra. Nesse movimento geopolítico e comercial eles estão inclusive abrindo espaço de cooperação para os países da Comunidade de Língua Portuguesa, da qual o Brasil faz parte, como liderança expressiva.
Os investimentos chineses em terras africanas estão sendo vistos como o motor do desenvolvimento econômico em um continente devastado pela fúria colonial européia. As Zonas Econômicas Especiais, que a China tem desenvolvido na África, junta o socialismo de mercado aos baixos custos de mão-de-obra e a espaço para a migração dos funcionários das empresas chinesas que estão sendo instaladas na África. Em Angola, o número de chineses já superou o de portugueses.
Pode parecer irônico, mas a história dirá se a África negra, abandonada pelo neoliberalismo por não ter poder de consumo, será uma destacada salvadora do sistema capitalista. Um continente com mais de 800 milhões de habitantes da base da pirâmide mundial, aquecido com a mínima renda que seja, será um significativo mercado consumidor. Assim, impulsionada pelos investimentos chineses, a África negra começa a criar as condições para se livrar da dependência atávica das instituições financeiras multilaterais, que usurpavam a receita do petróleo e dos demais produtos africanos, como diamantes, para amortização da suposta dívida externa.
Os chineses estarão apenas ocupando um mercado abandonado pelo ocidente ou esta é a nova versão da “revolução permanente”? Roger Garaudy refletiu sobre as possibilidades de extrapolação teórica e prática do modelo chinês de socialismo. Teria esse modelo um valor universal ou estaria limitado às peculiaridades daquele país continental? O pensador francês tinha a crença de que o futuro do socialismo dependeria da resposta a esta pergunta, caso a China conseguisse impor sua linha política ao conjunto do movimento revolucionário mundial.
Em reação a pretensa busca por hegemonia no movimento comunista, num fragmentário confronto com a então União Soviética, a China teria sido, segundo Garaudy, responsável pelo enfraquecimento da luta comum socialista contra os avanços do capitalismo. Sua conclusão foi a de que “o modelo chinês de construção do socialismo (…) não responde aos problemas formulados pela nossa história, nem às exigências nascidas das estruturas dos nossos países” (GARAUDY, Roger. O problema chinês. Zahar, p. 176, RJ, 1968).
Por se encontrar bem no centro da região mais populosa e economicamente mais dinâmica do planeta na atualidade, abrangendo o extremo oriente da Rússia, o Japão, a península coreana, a Índia, o Sudeste Asiático e as ilhas do Pacífico, dentre as quais a Austrália e a Nova Zelândia, Khanna (p. 336) realça a influência econômica, demográfica, política e cultural da China como uma das três mais relevantes da geopolítica atual, ao lado dos Estados Unidos e da União Européia. O socialismo de mercado está indo além das fronteiras com a imagem de quem quer comprar e não invadir, o que tem sido visto com muita simpatia pelos africanos. Por isso, pode anotar, o mais novo fenômeno da raça humana será o surgimento das pessoas negras de olhos puxados.