O inimigo da tristeza
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 16 de Julho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O documentário “Simonal – ninguém sabe o duro que dei” (2008) é o registro de um mundo de extremos, um filme sobre reputação e inveja, fama e abandono, sucesso e rejeição pública. Em cartaz no Espaço Unibanco Dragão do Mar, o trabalho de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, conta com curiosas imagens de arquivo e depoimentos marcantes em sua força narrativa, para mostrar um ídolo da música popular que, por ser alienado, foi condenado em um momento de tensão e de definição de lados, nos limites da situação concreta da ditadura militar no Brasil.
Jogado no ostracismo, a partir da denúncia de que teria mandar torturar o contador da sua empresa no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), um dos símbolos da repressão em torno de quatro décadas atrás, acabou também apontado como informante dos órgãos de segurança do regime militar. Foi excomungado por ateus da política e da cultura e banido por beatos das artes e da mídia. Pagou seus tropeços com o preço da invisibilidade, na clausura moral que o levou a depressão e ao definhamento alcoólico até a morte.
Wilson Simonal (1939 – 2000) se construiu na fragilidade de seus atos, na contraditória sutileza da força da fama. Ele só existia pela referência que se tornara e parou de existir no momento em que deixou de ser alvo da admiração das pessoas. A contar as aventuras de um grande artista que não sabia medir os efeitos da sua alienação e que não supunha que um dia poderia precisar responder como indivíduo, pelos seus atos, o documentário mostra um exemplo de como existir precede à própria condição humana e seus limites.
Que Theodor Adorno (1903 – 1969) não me ouça, mas Simonal flexiona a tese do crítico de Frankfurt, de que a música de entretenimento seria por razão comercial destituída de valor artístico. Sucessos como “País Tropical”, “Meu limão, meu limoeiro” e “Sá Marina”, demonstram que em muitos casos dá para conjugar uma coisa com a outra. Mas foi o estilo suingado, apelidado de “pilantragem” e o seu comportamento espaçoso, que levou o carismático cantor a ser alvo de duas críticas: a de contribuir para a retração da consciência individual e coletiva da população e a de ter graves deformações de caráter.
Dos transtornos psicossociais resultantes da ditadura militar, o sumiço simbólico que repercutiu na vida de Simonal é um dos mais emblemáticos. Ele reclamava que virara um fantasma. O documentário reacende os dois mundos em que transitou o artista: o das relações de endeusamento e o do ostracismo deliberado, permitindo que, hoje, distanciados tenhamos a liberdade de, se não entender, pelo menos de sentir as contradições que envolvem a biografia desse inusitado intérprete da música brasileira.
É chocante o corte brusco entre a glória e a situação inglória em que viveu Wilson Simonal. Ele foi eleito o inimigo da tristeza pelo público e ao mesmo tempo inimigo da causa política que combatia a ditadura. O maior problema do cantor estaria, nesta antinomia, no fato de ele vender alegria num período em que politicamente o Brasil estava proibido de ser feliz. Simonal não soube criar uma resposta para este dilema. Era ingênuo demais em sua malandragem.
O filme impacta pelo desamparo, pela angústia da impotência do protagonista abatido em pleno voo, sobretudo quando o artista passa a amargar a circunstância do ser temporal, do ser que tem fim, largado no purgatório do anonimato. As condições políticas do país impuseram a Simonal um desafio para o qual ele não estava preparado para enfrentar, que era o de viver uma vida comum. Como Michael Jackson (1958 – 2009), ele era a própria fama, não tinha como realizar as possibilidades do mundo de fato.
O documentário “Simonal – ninguém sabe o duro que dei” é um retrato bem feito e forte das particularidades extremadas em que o artista viveu. Sua experiência de busca de um espaço para existir começa na pobreza e na cor negra da pele. Em certa ocasião, quando foi recebido com pompas em uma sauna carioca, teria confidenciado que sua mãe trabalhara como doméstica naquela casa e que na infância ele comia o que ela jogava para ele por cima do muro.
Pela imagem deplorável, construída sobre Simonal, o documentário mostra atitudes surpreendentes do cantor, quando ele toma posição diante do preconceito. Leva a questão ao palco, aludindo o ativista político norte-americano, Luther King (1929 – 1968) e fazendo canção para o filho, desejando a ele uma vida em um mundo mais justo. Como a fama é feita de voláteis contingências, seu discurso não teve validade para a política de então e passa despercebido como mais uma de suas variantes exóticas.
Os caminhos da memória e da história são eminentemente tortuosos. Tempo adentro levam aos contextos mais distintos e às leituras mais diversificadas. Cada acontecimento é um fervilhar de expressões. O que tem nexo para uns pode não ter para outros, o que tem valor para uma época pode não ter em outra. O documentário sobre Simonal dá uma noção aberta do que se passou, sem pretensões conclusivas.
A conservação ou a transformação do jeito de olhar o que se passou está diretamente vinculada ao que se busca no futuro, quando este se torna presente. O documentário Simonal é uma peça educativa e deveria ser discutido como realidade brasileira e servir de fonte para estudos da condição humana. Não se trata de um fato isolado. Ele manifesta o perfil de uma geração de memória fantasista, que o fez o linchamento de um ídolo, sem direito ao teste da primeira pedra.
O documentário Simonal não é para ser visto em busca de verdades e de mentiras. A polêmica trajetória do cantor não se resume a isso. Não se trata de provar uma ou outra tese. O que vejo de grande importância em histórias assim é o poder que elas têm de mexer com os nossos sentimentos, a capacidade que apresentam de ensinar o que não se ensina, de ensinar intuição, empatia, antipatia, senso de justiça e de injustiça, tudo a um só tempo, desrracionalizando a nossa percepção.
Wilson Simonal, culpado ou não, foi deliberadamente eliminado da sua condição de pessoa. Uma condição que ele talvez nunca tenha tido a oportunidade de experimentar. Nem antes, nem depois da fama. Sua história é a história do sucesso, da fama e da seleção social. Por ser a história de uma eliminação insidiosa, tem raízes nas práticas correntes dos processos humanos mais extremados.
O filme abrange fatos sociais, políticos e culturais de largo significado, que oscilam entre a arrogância e a fragilidade dos vencedores. Simonal era um negro famoso, um pobre que encantava platéias, um alienado, uma analfabeto que fingia falar inglês tão bem que fez a diva do jazz estadunidense Sarah Vaughan (1924 – 1990) a misturar português em seu fraseado de bebop. Tudo isso o levou a ser açoitado no pelourinho da classe artística, política e intelectual que, embora mestiça e bem nascida, tinha uma alma branca que não o perdoava pelo sucesso.
Ao ficar sem o próprio nome para zelar, Simonal experimentou o caso-limite da desonra por envenenamento das relações e pela abdicação forçada do seu espírito de celebridade. Derrotado abruptamente na seleção social, ele passou a viver recluso, o que certamente multiplicou o seu sofrimento e o levou a descarregar para dentro de si a hostilidade e o ranço da perseguição. É bom atentar que, em se tratando das contradições simonásticas, a maior perseguição que ele sofreu foi a da indiferença.