O turismo de charme
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 23 de Julho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Por esses dias de alta estação, o nosso olhar soma-se ao olhar dos amigos que nos visitam para produzir novas percepções do que somos e do que estamos fazendo ou deixando de fazer como destino turístico. Em que pese a atração de grandes empreendimentos hoteleiros para o litoral, boa parte das conversas aborda o nosso potencial de desenvolver melhor as pequenas estruturas que buscam valorizar as belezas naturais e o rico patrimônio cultural e comunitário cearense.
No guia da Associação Roteiros de Charme existe apenas um lugar de hospedagem registrado no Ceará, que é o Orixás Art Hotel, na praia de Flecheiras, em Trairí. Com exposição permanente de esculturas da Galeria Orixás, de Embú-SP, e Sintra, Portugal, o Orixás está bem integrado ao coqueiral da vila de Flecheiras, tem boa cozinha e uma pequena horta orgânica, mas deixa a desejar no serviço de atendimento e na sinceridade do aconchego.
Em termos de conforto, estilo e encantamento, temos outras pousadas e hotéis, como a Casa do Mar, na praia de Tremembé, no litoral leste, e a Rede Beach, na praia de Guajiru, no litoral oeste, que merecem a referência de ambientes de charme. Além de charmosos nas suas estruturas e qualidade de acolhimento, respeitam o meio ambiente, a cultura local e não perturbam a vida social com poluição sonora e visual.
O certo é que se torna preciso muito esforço para contar nos dedos de uma mão as pousadas e hotéis realmente agradáveis, oferecidas pelo turismo cearense nos 573 quilômetros de sua costa, fora do circuito que prioriza campos de golfe e outras estruturas que podem ser oferecidas em qualquer lugar do mundo. Essa ausência do que se poderia chamar de turismo sustentável de fato traz muitas interrogações. E uma delas, talvez a principal, é a que nos leva a perguntar se queremos explorar ou desenvolver o nosso litoral.
Ainda tomando como parâmetro as características dos Roteiros de Charme, fico me indagando quantos dos empreendimentos turísticos que vêm sendo feitos no Ceará poderiam assinar um Código de Conduta Ambiental, que comprometa o signatário a preservar a paisagem e a fauna e a flora, a evitar o uso de produtos adversos ao meio ambiente, a priorizar fontes alternativas de energia, enfim, a adotar os três “Rs” da consciência ambiental: reduzir, reutilizar e reciclar.
A natureza, a cultura e a vida social das comunidades são mais do que ativos relevantes da economia do turismo, são o próprio sentido da atividade, que é, ou deveria ser, viver bem para receber bem. Essa diferença se manifesta no capricho dos detalhes expressos nas luminárias de fateixa, no pão saudável, encomendado às padarias locais, e nas saborosas entradas à base de algas marinhas, produzidas pelas comunidades da zona costeira, com o apoio efetivo do Instituto Terramar, organização da sociedade civil, empenhada no desenvolvimento humano e na sustentabilidade sócio-ambiental.
É desconcertante observar que as melhores pousadas, os melhores hotéis e restaurantes do litoral cearense sejam, via de regra, de proprietários estrangeiros. Evidente que em tese não há problema que investidores de fora montem negócios em nossas praias. O que causa perplexidade é que o litoral esteja sendo literalmente comprado à base de dólar e euro, enquanto as comunidades litorâneas são tangidas para os morros. Brevemente o noticiário começará a falar do cinturão de favelas que está sendo construído à margem da privatização do litoral cearense.
Temos um erro histórico na forma como nos relacionamos com o litoral, que conviria ser corrigido, se pensamos em sustentabilidade: por força de termos chegado à costa, a partir do interior, na busca de escoar a produção de pele de animais, de carne seca, oiticica, cera de carnaúba e algodão, ainda não aprendemos a canalizar a vocação empreendedora do cearense para aproveitar as vantagens comparativas da nossa costa, em economias como a do turismo. Ainda estamos no estágio primitivo de especuladores para ganhar uma boa grana com a venda de terra bruta, de ventos, dunas e coqueirais.
Nossa consciência devoluta não consegue despertar para a necessidade de instrumentos reguladores do crescimento, como seria um plano diretor para o litoral, que primasse pelo desenvolvimento do turismo, reconhecendo os direitos dos habitantes da costa de usufruir da riqueza de suas próprias praias, cultura e vida comunitária. Com toda a movimentação desbalanceada de ocupação do litoral, praticada nas últimas três décadas, ainda me parece haver tempo de pensarmos em algo que dê clareza, que configure um sentido decente para o nosso turismo costeiro.
Espera-se que o arrojo do governo estadual para o desenvolvimento turístico do Ceará esteja revisitando profundamente o modelo de expansão cambebano para o setor, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento do litoral. Do ponto de vista da sustentabilidade, temos tudo para oferecer serviços de padrão global em macros e micros empreendimentos, com suporte balanceado e multifacetado, com crescimento qualitativo. Se, do ponto de vista econômico, a dinâmica do turismo internacional exige a instalação de grandes resorts, do ponto de vista social e político a tendência do mundo é para a humanização.
Como setor estratégico para o desenvolvimento do Ceará, o nosso turismo precisa trabalhar mais os empreendimentos moldados para a integração comunitária e ambiental. A atenção pela interdependência num mundo cada vez mais sistêmico, passa por redesenhos econômicos, que sejam capazes de respeitar o meio ambiente e de promover a emancipação social. A criação das condições para esses avanços depende obviamente de vontade política e de liderança.
O litoral do Ceará é um campo de possibilidades turísticas e não podemos nos dar ao luxo de deixar que os empreendedores locais compitam desigualmente com investidores externos, armados de moedas fortes e de conhecimento do negócio. A quebra da quase exclusividade da exploração do turismo de praia por estrangeiros só será efetivada se houver uma preparação do empreendedor local para os médios e pequenos negócios, de forma que haja algum contrapeso que force o turismo economicamente eficiente, mas socialmente justo.
O turismo com equilíbrio passa pelas pousadas e hotéis de charme e é tão importante para a nossa agenda social, econômica e política quanto as questões da socioeconomia solidária, da produção orgânica, do mercado justo e da agroecologia. Os agentes de desenvolvimento, oficiais ou da sociedade civil, têm, ou deveriam ter, o compromisso de promover um amplo processo sistemático de estímulo à cultura turística e de facilitar o acesso das pessoas que querem se tornar empreendedoras do setor do turismo.
A vocação empreendedora do cearense é um atributo louvável, enquanto habilidade primária, mas a realidade do mercado exige que ela seja uma competência. Para isso, precisamos compreender e praticar os cinco “Is” do empreendedorismo: intenção, informação, imaginação, implantação e inovação. Mais do que isso, precisamos dar oportunidade às pessoas para que se realizem no que fazem. Jogo a minha esperança na honestidade de um taxista, conhecido como Pescoço (exatamente por não tê-lo) que na terça-feira passada encontrou a máquina fotográfica de um amigo meu no banco do carro e foi ao hotel devolvê-la. Ao saber disso, reforcei em mim a convicção de que o turismo de charme passa por esse tipo de prova de compromisso por parte de todos os elos da cadeia.