Fundo Setorial Pró-Leitura
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Setembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Há cinco anos o governo federal desonerou (Lei 11.033/2004) a cadeia produtiva do livro de pagar PIS/PASEP e Cofins , reduzindo em média 9% dos tributos sobre a produção. A desoneração, que num plano mais imediato visou melhorar a competitividade do setor, tinha como objetivo maior e de longo prazo, fomentar a democratização do acesso ao livro. Em contrapartida, o mercado editorial passaria a contribuir com um fundo a ser criado em favor das ações de incentivo ao livro e à leitura.
O Ministério da Cultura (MinC) regulamentou o acordo, criando o Fundo Setorial Pró-Leitura (FSPL) que, assim como o Vale Cultura, integrará o sistema de políticas públicas compartilhadas entre governo, mercado e sociedade civil. Editores, distribuidores e livreiros deverão contribuir com cerca de um por cento do faturamento anual para a composição do arranjo de recursos que financiará as ações do Plano Nacional do Livro e da Leitura.
A iniciativa é boa para todo mundo: bem administrado, o FSPL contribuirá para a divulgação do hábito de leitura, para a formação de mediadores, para o fomento à realização de eventos e programas que disseminam o livro, com efeitos econômicos positivos para o próprio mercado, em todos os elos da cadeia. O raciocínio econômico aplicado a esse fundo setorial tem o mesmo viés do keynesianismo de indução de demanda, que vem irrigando a Base da Pirâmide brasileira com recursos de destinação popular, revertidos em fortalecimento do mercado interno.
Esse tipo de ação é tão relevante que, em 2006, algumas entidades mantidas pela indústria do livro criaram o Instituto Pró-Livro (IPL), tendo como finalidade a promoção do livro e da leitura, do ponto de vista e dos interesses do mercado, contando inclusive com a participação de representantes oficiais. Um dos bons trabalhos desenvolvidos pelo IPL foi a pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, que comentei neste espaço (DN, 12/06/2008) e que revelou o aumento da disposição dos entrevistados de ampliar o conhecimento e a informação pela leitura.
Com a finalização do projeto que institui o Fundo Setorial Pró-Leitura, a ser mantido principalmente por contribuições compulsórias, está havendo uma certa reação por parte de formadores de opinião neoliberais, que pregam o voluntarismo das contribuições para esse tipo de movimentação. Entretanto, o FSPL em nada impede que as corporações do mercado editorial façam seus investimentos próprios de marketing e de trade marketing.
O fundo, na forma como está posto pelo MinC, é a concretização do acerto resultante do processo de isenção de encargos tributários feito em 2004 a partir de proposições do próprio mercado editorial. Trata-se de um mecanismo de valorização da leitura, com impacto no desenvolvimento da economia do livro, mas que vai além dos interesses do mercado. Tanto que seu Comitê Gestor será formado por cinco representantes do mercado, cinco dos órgãos de cultura e educação do governo federal, dois escritores e dois mediadores de leitura.
A contribuição compulsória para a formação do FSPL é um compromisso de editores, distribuidores e livreiros beneficiados com a desoneração e que pensam no fortalecimento do setor e não apenas isoladamente no seu negócio. Um ponto que precisa ser bem mensurado neste caso é se haverá diferenças percentuais de participação por tamanho de empresa e se o percentual de contribuição será vinculado aos custos de cada segmento. Diferenciada ou não, a contribuição compulsória é fundamental para a saúde de um setor marcado pela desigualdade competitiva.
A concentração nesse mercado tem priorizado a literatura de araque, aquela do romance padrão, do esoterismo deslavado, da auto-ajuda tacanha, da bobalização infantil e juvenil, enfim, das narrativas inspiradas em pesquisas e estatísticas de consumo, modeladas pela razão instrumental e mercantil da arte de contar histórias. Essa tendência vem causando um mal-estar cultural pelo que representa de empobrecimento da experiência estética do leitor, causado pelo enxugamento da diversidade de títulos, recintos e situações propícias à elaboração do pensamento e à diversão com sensibilidade e honestidade autoral.
As grandes editoras, sobretudo as de capital estrangeiro, estão engolindo as pequenas, adquirindo seus catálogos e congelando títulos que deixam de circular por mera deliberação de estratégias montadas à revelia dos interesses nacionais. Deveria haver uma lei que obrigasse a disponibilizar no portal da Biblioteca Nacional todos os títulos que ficassem fora de catálogo por um determinado período. O livro, como produto cultural necessário, não deve ser tratado simplesmente como mercadoria e nem o leitor, na sua condição de cidadão, merece ser vitimado pelos efeitos da concentração.
Ao fortalecerem o hábito de leitura e ao reconhecerem no livro um instrumento capaz de instigar o descolamento das pessoas dos constantes ataques obtusos da comunicação virtual de massa, que tem utilizado muitos dos excepcionais meios tecnológicos para reduzir o sentido da vida ao imediatismo, os recursos do Fundo Setorial Pró-Leitura poderão contribuir para dar nexo ao imenso fluxo de informações espalhadas pelos múltiplos e intrincados sistemas de vínculos comunicacionais, oferecidos aos mais indistintos usuários.
A valorização do livro e da leitura não compete com os meios e as formas velozes dos comentários em tempo real e nem com a busca de visibilidade manifestada na prática cotidiana do compartilhamento de intimidades. Por trás do simulacro da aceleração, da redução das pessoas a pontos de conexão, por onde trafegam dados nervosos e muitas vezes fugazes, há uma vida lenta, real, necessitando de espaço para o exercício do prazer sereno. Neste plano, o estímulo à leitura é mais importante do que podemos supor, não só para o desenvolvimento pessoal, mas para o funcionamento pleno da sociedade.
Bancar um fundo em favor do livro e da leitura, mais do que uma contrapartida à isenções fiscais e mais do que uma inteligente medida de encorpamento setorial é um gesto de cidadania empresarial na preparação das pessoas para que usufruam com autonomia dos benefícios das tecnologias de alta conectividade, criando condições para que algum sentido se agregue e se impregne em sua dinâmica. E não estou falando de conselho sobre leitura, estou falando de interação com dignidade e isso quer dizer não deixar que as opções de leitura sumam na avalanche de informações que ocultam mostrando e nas vitrines alugadas de livros que entretem frustrando.
O Fundo Setorial Pró-Leitura, em sua configuração de mesa com quatro pernas, embora as duas pernas formadas por autores e mediadores (educadores, bibliotecários e contadores de histórias) ainda sejam menores do que as pernas do governo e da iniciativa privada, expressa uma intenção de equilíbrio democrático que dificulta o desvio de recursos para o atendimento de interesses isolados de monopólios e hegemonias da indústria e do comércio tradicionais e virtuais.
Um dos valores comparativos dos povos no diálogo global é a originalidade social e cultural de cada um. E o lugar das pessoas e dos grupos sociais no mundo contemporâneo passa pelo livro e pela leitura, ora como um ato pessoal e ora como um ato coletivo. Por isso, conquistas como a do FSPL precisam ser asseguradas e postas em prática, como prova de que o Brasil e nós brasileiros estamos mesmos dispostos a ter voz na construção de um novo padrão civilizatório.