Depois que o circo passou a ter atrações contratadas, com artistas profissionais específicos para cada número, não mais ouvi falar de criança querendo fugir com as companhias circenses. Não que esses espetáculos tenham perdido o encantamento, mas o que magnetizava mesmo a meninada era a autenticidade dos diferentes tipos humanos e suas façanhas de imaginação prática, o atrevimento dos palhaços, a criatividade em estado de improviso e a tensão lúdica diante do perigo.
No picadeiro da minha infância o circo que levava as curiosidades do mundo e um modo de vida amparado na família de arte e não de sangue fez muitas apresentações que nunca abandonaram a forma com que vejo o mundo e com a qual nele me movo. Isso porque o circo que fugiu comigo atua em um domínio que não é realidade nem ficção. Os artistas do circo que me acompanha são expostos como os atores de teatro, com a diferença de não estarem representando; mostram o que são e do que são capazes com suas habilidades e fragilidades.
Mulheres e homens acrobatas, trapezistas, equilibristas, engolidores de fogo, músicos, dançarinos, telepatas, ilusionistas, contorcionistas, atiradores de faca, mágicos, malabaristas, domadores de feras e palhaços ajudaram meus olhos a ver que somos as nossas possibilidades. E mais, que essas pessoas, por serem um misto de ciganas, eslavas, negras, índias, amarelas e brancas, engrandeceram-me com o tanto de cada uma que trago comigo. O circo é nômade e diverso, colhe e semeia emoções por onde passa.
Os palhaços são seres especiais sempre prontos a atrapalhar a autoridade da perfeição e a revelar que o cômico é um bom truque para flexionar regras e temores. Diante da orquestra fazem percussão em penico; entre as potentes motos do globo da morte aceleram uma mobilete; ao lado do habilidoso equilibrista de pratos sacodem varetas com pratos pregados nas pontas; e no salto de trapézio perdem as calças e fingem vergonha da cueca de bolinhas vermelhas. Os palhaços alertam sobre a ostentação ao mostrar que tudo na vida não passa de uma cambalhota.
A chegada do circo alterava o cotidiano da cidade da minha infância. O desfile de trailers, reboques, jaulas e artistas deixava o lugar mais colorido, mais alegre, mais festivo. Nas ruas, gritei o palhaço das pernas de pau. Vi muitas montagens e desmontagens de circos, a preparação de palcos, picadeiros, cadeiras e poleiros, que era como chamávamos as arquibancadas de tábuas. O levantamento e a retirada da lona em si era um espetáculo. Já adulto, na condição de pai, vi com os meus filhos a animação Dumbo (Disney, 1941), e as cenas da montagem do circo, com cada um de todos os integrantes sabendo o que fazer, estava viva em mim.
Mesmo sentimento eu tive ao ouvir o tom evocativo de Mágico, o lirismo de Palhaço, o som trêmulo e imagético de Equilibrista, a calorosa faixa com nome do poeta-cantador cearense Cego Aderaldo (1878 – 1967) e todo o álbum Circense (1980) do músico fluminense Egberto Gismonti, com linda participação do maestro mineiro Benito Juarez (1933 – 2020). Em Mais do que Paixão, o piano de Gismonti abraça as palavras do poeta carioca João Carlos Pádua (1950 – 2009) para dizer que “Não espere nada demais / de meu coração / que bate e rebate / e brinca”, como se dissesse que no jogo circense não tem disputa, nem vencedor, só diversão, como nas brincadeiras infantis.