Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Novembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na sexta-feira, 13, recebi uma mensagem eletrônica que trazia como remetente o nome da striper e ex-vereadora Débora Soft. O assunto dizia respeito à campanha dos candidatos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) à secção estadual do Ceará. O texto disponibilizava um link para um blog de feitura grosseira e pífia, que apresentava uma enxurrada de comentários de grande pobreza de conteúdos, como as palavras maldosamente atribuídas a Soft.
Vou reproduzir alguns trechos, colocando “xxx” no local do nome do candidato, para que você, leitor, tenha uma idéia do que estou falando: “Se o “xxx” se apoiou em mim, não lembro. Meu bem, pagando eu apóio na hora, pode até pular em cima. E eu sei que dinheiro pra você não é problema. Vem que tem (…) Só não pode fazer assim, benzinho, sem nem avisar. Primeiro você colou um adesivo no Chevette do Anão Erótico, meu ex-companheiro artístico (…) Depois foi a Veruska quem apareceu no seu site (…) Por que não usou uma foto menos vestida e com telefone de contato? Disseram que teu site é pra advogados ricos, seria uma boa chance dela arrumar uns bofes”.
Como essa lamentável peça de campanha, as eleições da OAB no Ceará – e parece que nos demais estados brasileiros não foram diferentes – apresentaram condutas questionáveis que merecem ser debatidas não apenas pelos advogados que compõem a Ordem, mas por toda a sociedade. Por sua trajetória de lutas em favor dos direitos humanos e sociais, a OAB é uma das mais respeitadas instituições da sociedade civil brasileira. Sua missão vai além da missão de um órgão corporativo, que trata dos interesses profissionais dos advogados; ela alcança o papel de instituição comprometida com a democracia brasileira.
A Ordem dos Advogados do Brasil tem por finalidade mais plena “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (Lei 8.906/94, artigo 44, capítulo I – dos fins da organização). Quer dizer, há uma parte significativa da razão de ser da OAB, que tem caráter, digamos, pro bono público, que tem competência e dever de atender demandas cidadãs.
O que de mais grave vejo na forma ostensiva e pouco recomendável que caracterizou a campanha para a presidência da OAB, é que estamos às vésperas de um ano que terá eleição para presidente da República, para governadores, senadores e deputados e a instituição que deveria ser a principal guardiã dos valores democráticos dá tamanho mau-exemplo, reproduzindo cacoetes desprezíveis das campanhas partidárias, com uso indevido da internet, showmícios e exagero na realização de bandeiraços, boca-de-urna e outras movimentações desproporcionais ao motivo, que causaram desconforto urbano.
Evidente que o exercício político participativo no seio da sociedade civil é sempre muito bem-vindo. As eleições da OAB merecem ir além dos interesses dos advogados; elas estão diretamente ligadas ao processo de consolidação dos direitos democráticos no Brasil. O respeito à democracia é um pressuposto indispensável nas manifestações da entidade, inclusive em seus pleitos eleitorais. O que pareceu despropositado nas eleições encerradas no último dia 20, quando foi eleito o advogado Valdetário Monteiro para presidir a entidade nos próximos três anos, a partir de primeiro de janeiro de 2010, foi a expressão do interesse de grupos de advogados postos acima do interesse público.
Estamos em um momento de intensas transformações das condições sociopolíticas em todo o mundo e precisamos de papéis-modelo que sirvam de farol para a sociedade. A OAB tem sido um desses faróis no Brasil, por ter dado crédito à democracia nos períodos mais difíceis, como nos anos de ditadura militar. Entretanto a OAB que há pouco foi às ruas não parece com aquela que com tanta seriedade acuou torturadores, que teve destacada importância no processo de abertura política no Brasil, na anistia, na campanha das Diretas-já, na Assembléia Nacional Constituinte, na mobilização pelo impeachment do presidente Fernando Collor, enfim, a instituição combativa, comprometida com a democracia brasileira.
Da mesma forma que cabe ao Código de Ética e Disciplina (Resolução pro bono, art. 6º) versar sobre publicidade e propaganda relativas à atividade profissional do advogado, a observância dos mesmos princípios deveria valer em caso de campanhas eleitorais da OAB. O Tribunal de Ética estabelece (Lei 8.906/94, capítulo IV – da publicidade) uma série de restrições (art. 28 ao 33) à tentação do profissional de advocacia de perder a discrição e a moderação nas suas comunicações públicas. Caso o estardalhaço das campanhas pela presidência da OAB seja identificado como uma forma de busca de distinção na captura de clientela, com o propósito de promoção pessoal, profissional, política ou de escritórios de advocacias, essa é uma situação que carece de investigação sobre possíveis violações a esses dispositivos e um urgente debate no campo da ética e da conduta.
Não é bom para a cidadania no Brasil que a Ordem dos Advogados tenha sua imagem desgastada por falta de uma reflexão sobre o que ela significa para o País. Dois anos atrás, em 2007, a OAB sofreu uma corrosão de imagem quando, imagino, foi usada indevidamente pela seccional de São Paulo, em uma campanha chamada “Cansei”, financiada por um pequeno grupo da elite econômica e política paulistana, que se aproveitou da comoção nacional causada pela tragédia com o avião da TAM naquele ano, para fazer necrofagia política. A sociedade reagiu, a manobra foi arrefecida, mas a OAB saiu chamuscada.
As narrativas de eventos como as eleições da OAB deste ano escondem muitas vezes as projeções finalistas que dão suporte ao modo como acontecem. Com o crescimento do consumo consciente, das movimentações de cidadania política e do social-ambientalismo participativo, o Direito vem tendo uma importância cada vez mais destacada na sociedade. Um poder que já foi da teologia, da economia e que está sendo da tecnologia, caminha para ser do Direito. Assim, a sociedade espera uma disposição moral diferenciada da OAB em suas práticas, de maneira que a entidade continue honrando a referência que construiu ao longo de décadas de enfrentamentos e conquistas.
É ruim para a democracia que o palanque da OAB deixe sensações duvidosas do que quis ou quer demonstrar. A OAB já disse a que veio, mas está precisando dizer a que vai. Caso haja alguma intenção de mudança de estatuto, que isso seja colocado abertamente. O que não dá é a sociedade civil ter a Ordem como uma instituição de direitos sociais e alguns grupos de advogados resumirem seu patrimônio Institucional a uma entidade de interesses meramente corporativos.
Prefiro acreditar que não haverá inversão na perspectiva da OAB. Ela não deixará de ser uma entidade que cuida da cidadania para ser um simples agente do mercado. A concorrência predatória de grandes escritórios deixa apenas migalhas para a grande maioria dos advogados. Como tantos outros cidadãos torço para que essa contradição seja corrigida, que os responsáveis pelo mau uso da instituição entendam o tamanho do desserviço que estão causando e que a OAB volte a ser a referência que seus líderes ajudaram a construir na luta contra poderes indesejáveis.