Válter Pini e o bumba beija flor
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 03 de Dezembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O sociólogo e compositor Válter Pini está comemorando 20 anos da criação do Projeto Musiconsciência e 10 anos que coordenou a parte artística do VII Congresso Brasileiro da Unipaz, então realizado em Fortaleza. Ele é paulista e considera o Ceará o seu segundo estado, por ter construído uma relação afetuosa com os cearenses ao longo desses anos. Pini vai aproveitar para falar desse carinho em atividade de Musiconsciência que desenvolverá amanhã (4) e sábado (5) no XX Seminário da Formação Holística de Base – FHB, promovido pela Unipaz-Ceará, na Escola Vila, no bairro de Fátima.

Ele tem paixão pelo maracatu cearense, paixão abraçada na música “Girassol”, cujo refrão diz da transformação pelo amor, em jogo fonético: “Se arar com amor, Terra que chora vai se transformar, Terra sorrindo feito um girassol”. Ouve-se “Ceará com amor” em “Se arar com amor”, como se ouve o murmurejar de asas no voo do “Pavão Mysteriozo”, do Ednardo, e o tagarelar de penas coloridas do pavão na cabeça da dança de maracatu, na música “Estrela Brilhante” de Calé Alencar e Carlos Pita. Das combinações de formas, conteúdos e intenções feitas por Válter Pini, sempre me lembro do apanhado de canções que ele gravou acompanhando a voz emocionada do querido físico indo-cearense Harbans Lal Arora, cantando em hindustani as cantigas da sua infância na terra de Gandhi.

A leveza é a tônica desse tipo de encontro de cultura de paz, quando se procuram o despertar da inspiração e da criatividade por meio de vivências, dinâmicas e momentos de sensibilização. Como músico terapeuta, Válter Pini utiliza em seu trabalho o recurso pedagógico da canção, na sua extensão cognitiva e emocional. Pini é autor de temas musicais que abordam conteúdos holísticos em diversos ritmos brasileiros. Dentre esses temas há sotaques de maracatu cearense (A paz em nossas mãos), de carimbó paraense (A nova estrela de Belém), de chamamé gaúcho (Chimarrão da paz) e de boi bumbá maranhense (Bumba meu beija flor).

Talvez no pulsar do pequenino coração do beija flor, um passarinho que se alimenta de néctar, esteja a síntese da arte de semear paz, como sugerem os versos de Válter Pini: “Beija, beija flor / pétala por pétala” (…) “Abro as minhas asas / luz da alegria”. Desse bumbar emana a melodia da integridade, fazendo vibrar a plumagem iridescente e o encanto das cores de bolhas de sabão, como princípio organizador e gesto de comunhão de todos os viventes da natureza. Assim, o beija flor que há em nós pára no ar, voa pra trás, voa pra frente, “bota o boi pra brincar” com alegria no coração. E pergunta: “Pra onde foi a paz? Pra onde é que o mundo vai / se a gente não afinar / as cordas do coração?”.

A musiconsciência de Válter Pini põe uma clave de sol na precariedade da ambiência sonora, como uma tentativa de recuperar a importância do ouvir em uma sociedade dominada pelos ciclopes das quatro telas (televisão, computador, cinema e celular) sugadoras insaciáveis de atenção. Essa realidade torna cada vez mais urgente o exercício de escutar. Escutar os sons naturais, o vento, a chuva, a correnteza dos rios, as ondas mar, as vozes dos pássaros, dos insetos e dos animais; escutar as variantes de cada um, o despertar do dia, o anoitecer, os cantos de defesa territorial, de alerta, de medo, de voo e de alimentar os filhotes. Escutar os sons culturais, as canções de ninar, as músicas de diversão, de prazer, de angústia, de alegria, de encontro, de despedida… os réquiens.

Nesse aprendizado, aguçar a audição é a melhor forma de sentir as fontes de informações sonoras que temos permanentemente à nossa disposição, mas nem sempre nos damos conta da sua proximidade. Tem uma música do Válter Pini que acho uma grande ilustração no despertar da inspiração nos sons, nas vibrações e nos sentidos, que é “Brasil, um País cujo Hino começa com o verbo Ouvir”. Quantas vezes paramos para pensar nisso? Quantas vezes procuramos escutar o brado retumbante da nossa poesia mestiça? No eco da busca por respostas se impõe a prioridade ao ouvir; prioridade que norteia a musiconsciência de Pini e sua crença de que os bons rumos dependem de um ouvido afinado.

Como filtrar as mensagens indesejáveis dos sons indesejáveis e deixar o nosso interior absorver o que nos chega pelos ouvidos despertos é um desafio da hipermodernidade. Aprender a ignorar os ruídos da poluição sonora e do barulho da sujeira mental que isola as pessoas passa pela valorização dos fundamentos dos sons nos embalos da existência. A necessidade de mudança de percepção do espírito do tempo nos leva a enfrentar os laços psicossociais dos fones de ouvido para a imersão livre e envolvente nas sonoridades de paz. A musiconsciência é um dos caminhos de reinvenção do ouvir pelo aconchego dos sons, pela música das asas quase invisíveis e quase inaudíveis dos beija-flores.

Na musicoterapia a vibração interiorizada devolve a liberdade existencial pela eliminação das interferências dos sons das mensagens guiadas que ocupam os espaços que antes chamávamos de “ao ar livre”. A limpeza da mente do ioga, o silêncio interior da meditação, a contemplação da música natural e cultural, a maturação da identidade sonora dos lugares e a musicalidade do ser em sua dimensão vibrante fazem parte da experiência de restauro da harmonia mental, espiritual e social. Na musiconsciência, Válter Pini usa os rudimentos da música como zona de trânsito entre a realidade e o inconsciente, como linguagem de acesso ao equilíbrio psíquico e à socialização.

A atividade de Pini dá-se no uso da música para melhorar a habilidade auditiva e projetar seus múltiplos alcances, considerando que a canção está nas nossas emoções, mas também em nossa mente e em nosso corpo. A vivência musical para a educação da consciência contribui para elevar a sensibilidade no contato com o sublime, na dança dos sentimentos e na inversão do entendimento funcional da vida cotidiana. A musiconsciência abre as pessoas ao prazer da criação, da interpretação, da movimentação física, da afetividade integradora, da gratificação cultural e do convívio comunitário, pela satisfação da escuta “sobre todas as fronteiras”.

Os temas musicais de Válter Pini são certeiros por estarem sempre voltados ao alvo da coesão social e da autorrealização. Seu trabalho como mediador das relações entre processo criativo e processo curativo, entre “arte da música e arte da vida” e entre música e consciência, é um trabalho de afinação das cordas do coração. Nas músicas “Saber é sentir” e “São coração” o essencial se mostra longe da superfície, por estar no âmbito da nossa capacidade de comunicação intra e interpessoal. Para facilitar o ouvir do bumbar do coração de beija flor Pini desenvolve atividades transdisciplinares, com a ênfase vivencial das dinâmicas de grupo.

Como pesquisador em expressão musical, ele lança mão do caráter psicopedagógico das canções para aproximar as pessoas e colocar a inventividade a serviço da qualidade de vida da comunidade humana e do meio ambiente. O que Válter Pini faz à sua maneira é educar para a cidadania e para a paz. Cuidar do ambiente sonoro a ponto de ouvir as batidas do pequeno coração do beija flor é desconstruir o embrutecimento instalado no padrão de vida dominante. No bumba, bumba, do beija flor bumbá, Pini deixa voar o som do coração como símbolo da docilidade, da leveza e da beleza, em contraposição à reverberação agressiva da toxidade sonora que ressoa por onde a pessoa muitas vezes já nem se dá conta de ouvir o bumbar do coração dos beija flores.