O próximo gesto a guerra verde
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Mais de uma centena de premiês e de presidentes de países do mundo todo esgotaram duas semanas de trabalho em Copenhague e não conseguiram chegar a um consenso sobre compromissos efetivos a serem assumidos com relação à redução do aquecimento global. A conferência do clima, encerrada no último dia 19, revelou que não podemos, enquanto sociedade, enquanto seres humanos, ficar na dependência do tempo político, do tempo econômico, para agir em favor da enorme alteração cultural necessária à reversão da destruição do planeta.
O mundo é feito de atos. São os atos que movem os acontecimentos. E se os grandes eventos se resumem a passos é porque estão faltando gestos que transformem promessas em ações. Cada minuto não empregado no esforço de produção da sustentabilidade é um tempo desperdiçado, consumido em vão. Encontros como o que foi realizado na capital dinamarquesa são fundamentais, representam momentos especiais de tentativas das cúpulas da Terra, mas não devem ser resumidos de forma absoluta ao sucesso ou ao fracasso das civilizações.
As reações de ruptura da natureza diante da inércia dos povos no estabelecimento de um novo estilo de vida inspirado no equilíbrio dinâmico e não no crescimento predatório têm sido evidentes. As soluções de geoengenharia já não se restringem a ficção das ciências naturais. Com ou sem a experiência humana, a natureza realizará seus ciclos vitais. Melhor seria se encarássemos as mudanças climáticas como um aviso de que essa é uma solução que não pode ser comprada. Por isso, só há uma saída: mudar a nossa visão de mundo.
Sei que tem muita gente em lugares como o Brasil que acabou de ascender à condição de consumidor e que pode até estar se sentindo socialmente incluído por isso. Alguns, e não são poucos, passaram a se beneficiar do poder político e a usufruir da estranhamente prazerosa cultura do desperdício e, mesmo ideologicamente corretos, devem se perguntar se é ou não justo fazer o sacrifício de cumprir o que tanto defenderam em discursos. “Logo na minha vez”, deve ser o pensamento que atormenta quem está nessa situação. Pois bem, eu diria, logo na vez de todos, já que a grande satisfação cidadã neste século será a da honra de participar da construção de um novo mundo.
O quadro dramático vivido entre natureza e cultura exige um novo conceito de desenvolvimento, um conceito que defina a nova economia a partir de um pensamento socioambiental participativo. Somente a cooperação pragmática dos povos do mundo inteiro será capaz de mexer de fato e positivamente com os rumos do planeta. E essa movimentação não partirá dos países ricos, que construíram sua industrialização ao custo de destruição da natureza em seus territórios e por onde puderam devastar. Assim, não há como continuar a busca suicida de querer ser como eles são, de tornarmo-nos ricos nos moldes que eles se tornaram.
Aos países pobres e aos emergentes, usando uma classificação feita na ótica do mundo industrializado, cabe, portanto, o gesto de iniciar a grande mudança civilizatória de colocar o coletivo acima do individual, tendo evidentemente as individualidades como ponto de partida e de chegada. Continuar sendo seguidor ou inovar em tecnologia social é o dilema cultural que está posto. O desafio dos que verdadeiramente estão empenhados na sustentabilidade passa pela construção de um modo de vida que possa ser universalizado no que diz respeito ao uso dos recursos naturais e da preservação ambiental.
Não há mais porque seguir com a perspectiva enganosa de que dá para continuar crescendo, crescendo e crescendo sem parar, em um lugar que é esférico, que tem limites e que em discursos climáticos e geofísicos tem dito que não aguenta mais o ritmo a que tem sido submetido pela ação predatória da humanidade. Na guerra verde, travada entre os que querem seguir destruindo tudo, desde que continuem dominando, e os que estão dispostos a investir em qualidade socioambiental, desde que consigam se livrar do modelo mental de colonizados, a solução de sustentabilidade está na união entre ecologia e tecnologia.
O “x” da questão me parece marcado nesse mapa do tesouro ecológico e tecnológico. É ele que sinaliza para o próximo gesto da guerra verde. É ele que nivela em importância as nações do mundo. Observando assim, podemos ver que dar vez ao diálogo da sociedade civil pela atitude cotidiana de mudar onde dá para cada um mudar é tão importante quanto prosseguir com o diálogo dos líderes da política e da economia, como o que está previsto para dezembro de 2010 no México. Os líderes só chegarão a um acordo decente quando formos cidadãos decentes e comprometidos. Não há razão para esperar algo de cima para baixo. Para acontecer a tempo, essa transformação deverá eclodir de baixo para cima, de dentro para fora, como um vulcão a refertilizar o solo da nossa consciência árida.
No meu artigo “Batalha verde em Copenhague” (DN, 12/09/2009) prenunciei que a conferência do clima seria o palco da primeira batalha da guerra-verde multipolar entre Estados Unidos e China, no redesenho do novo mapa político, econômico e social do mundo. Não deu outra: o país de Barack Obama não quer mudar porque reduzir a poluição significa mais sacrifício para a sua economia, e o país de Hu Jintao também não quer mudar porque reduzir as emissões de carbono abala o crescimento de uma economia que multiplicou a renda nacional em uma dezena de vezes nas duas últimas décadas.
Os Estados Unidos não apresentaram metas, mas cobraram metas dos emergentes, que possam ser acompanhadas, e a China reclamou do seu direito ao desenvolvimento, argumentando que o aquecimento global foi agravado nos últimos séculos pelos gases de efeito estufa da industrialização, o que gera um contencioso histórico a ser bancado pelos países que se beneficiaram desse processo de agressão à natureza. Eis o impasse: quem acumulou poder em detrimento da biodiversidade não quer responsabilidades comuns, com participação diferenciada, e quem almeja competir por domínios nos mesmos padrões, quer o direito de acumular poder também em detrimento da vida na Terra.
Por não acreditar nos caminhos percorridos pelos Estados Unidos nem nos caminhos escolhidos pela China é que penso nas soluções que partam do instinto para a razão e não o contrário. Neste aspecto, gostei da participação do Brasil, que se mostrou solidário, disposto a fazer o dever de casa, crítico ao lamentar a perda da oportunidade do mundo iniciar o século com um acordo climático e que mediou o pacto possível para que as negociações sigam em andamento. O preço político, social e ambiental da demora será pago com instabilidades nos fenômenos naturais (desertificação, enchentes, desaparecimento das regiões costeiras e dos países-ilhas) e sociais (conflitos de fronteiras na geografia humana).
Esse é o noticiário da natureza. Infelizmente há quem acredite mais no noticiário da segurança plantado em ocasiões como a da conferência do clima. Por esses dias vimos notícias de que os cientistas descobriram planetas semelhantes à Terra, em órbita de outro sol; vimos também que a Nasa colocou em órbita um telescópio que registrará imagens do universo em luz infravermelha, com o objetivo de criar um mapa de asteróides e cometas que podem representar risco de colisão com o nosso planeta; e vimos circular na internet dados, supostamente assaltados por hackers de uma universidade britânica, que colocam em dúvida a veracidade do aquecimento global.