O princípio da precaução
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 31 de Dezembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando da eleição de Lula, em 2003, fiz uma música intitulada “O nome do meu País”. Nessa composição alegre e vibrante, reafirmo o nosso sentido de pertencimento em tons de “negro, nativo, branco / mestiço brio”. Ao fazer alusão ao ato de votar, sugiro logo o segundo mandato: “Eu faço um xis / Peça seu bis / Xis bem feliz / Por meus Brasis”. Deu tudo certo: presidente eleito, reeleito e um País que, apesar da dura realidade política, aponta para os horizontes da sustentabilidade e da vida democrática.
Apesar de satisfeito termino 2009 com um certo desconforto em termos de antevisão do Brasil após o fim do mandato de Lula. O tabuleiro político até que está animado no mexe e remexe para as eleições de 2010. Das possibilidades colocadas como chapas a serem definidas, identifico três como de bons ventos: Dilma Rousseff (PT-RS) e Roberto Requião (PMDB-PR), Marina Silva (PV-AC) e Guilherme Leal (PV-SP) e Aécio Neves (PSDB-MG) e Ciro Gomes (PSB-CE). Estou considerando que Aécio anunciou a desistência para apressar a decisão de José Serra pela reeleição ao governo de São Paulo.
No Ceará, a situação é diferente porque o governador Cid Gomes (PSB) já disse a que veio e nada mais natural que ele seja merecidamente reeleito, a fim de dar continuidade a uma porção de projetos que darão novos sentidos ao nosso desenvolvimento. Entendo também como mudança positiva a renovação de duas cadeiras cearenses no Senado Federal, com a provável eleição do ministro José Pimentel (PT) e do deputado Eunício Oliveira (PMDB). Eleitos, eles formarão ao lado do senador Inácio Arruda (PCdoB) uma bancada de senadores comprometidos com o projeto Ceará e o Projeto Brasil.
Penso nessas possibilidades e me pergunto: teremos, nos últimos anos, conseguido institucionalizar uma altivez cultural, social e política que nos permita estabelecer as relações necessárias com o mundo de forma livre do modelo mental de colonizado? Para mim, de tudo o que admiro na personalidade de Lula, nada se compara à capacidade que ele tem de deixar claro que não se intimida com conversas de superioridade e inferioridade. Assim, ele vem se legitimando como mediador fundamental no concerto das nações.
Diz-se que devemos tomar o princípio da precaução quando temos boas razões para acreditar que algo é prejudicial, mesmo quando não dispomos de evidências capazes de comprovar o dano. É com base nesse princípio que olho para o ano de 2010, que se inicia logo mais no dia de amanhã. Olho com os olhos de quem acredita que o Brasil está ciente do seu papel na multipolaridade geopolítica, mas quando observo a complexidade do que ainda precisa ser feito, sinto que deveríamos evitar o debate que procura reduzir democracia a eleição para intensificar uma compreensão mais ampla do papel do Brasil para nós brasileiros e para o mundo.
Da mesma forma que as eleições brasileiras são tratadas pelos interesses e muitas vezes com intromissões externas, o que se passa no mundo precisa estar no nosso radar na hora de ir às urnas. O Brasil precisa do mundo para mudar e precisa mudar para ajudar na mudança do mundo. Essa é uma co-responsabilidade planetária da qual não temos o direito de fugir. E as coisas não andam tão fáceis no espetacular momento de transformação que vivemos na atualidade, sejam para o bem ou para o mal.
No mês de outubro passado um tufão revolveu o solo do Laos e deixou na superfície cerca de 80 milhões de submunições explosivas que tinham sido lançadas naquele país do sudeste asiático há quatro décadas pelos Estados Unidos, em bombardeios “preventivos”, já que a única culpa do Laos naquele momento era ser vizinho do Vietnã, da China e do Cambodja. Os casulos explosivos vinham ao longo dos anos mutilando e matando milhares de crianças e agricultores que por curiosidade ou por atividade de cultivo da terra, detonavam as minibombas que infestaram o território daquele país desde que foram lançadas na chamada Guerra Secreta.
A superexposição de pessoas em todo o mundo a agentes cancerígenos e tóxicos, que estão no ar, na comida, na borracha das mamadeiras dos bebês, nos plásticos hormonados que cobrem os alimentos nas geladeiras, enfim, as substâncias tóxicas que entram nos nossos corpos por ingestão, inalação e pela pele são minibombas químicas sintéticas que têm sido encontradas inclusive no leite materno e no sangue de cordões umbilicais. O impacto das neurotoxinas tem causado mudanças nas pessoas, que vão desde ansiedade a déficit de aprendizado. Essas alterações atingem também os animais. Pesquisadores suecos contam da existência de um número crescente de ursos-polares hermafroditas, seres que têm sido contaminados pela poluição química que converge para o Círculo Polar Ártico.
A neutralidade suíça foi abalada com a criação, no início deste mês de dezembro, de uma lei que proíbe a construção de minaretes nas mesquitas instaladas no país. A aversão confessa dos símbolos religiosos orientais abalou a política e os negócios suíços. Muçulmanos de todo o mundo e defensores do direito à liberdade religiosa pediram a desconcentração dos escritórios da ONU sediados em Genebra e muitos bilionários árabes ameaçaram tirar suas fortunas depositadas nos cofres de Genebra e Zurique. Estima-se que um terço das fortunas privadas do planeta, algo em torno de três trilhões de dólares, estão protegidos pelo marketing da neutralidade suíça, independente de serem recursos sujos ou limpos, pertencentes a ditadores, políticos safados e investidores.
Na Bolívia, o presidente Evo Morales se reelege e reforça a sua política de refundação daquele país com quase dois milhões de crianças no cadastro do bônus escolar “Juancito Pinto”, um personagem inspirado em um menino que morreu por ocasião da Guerra do Pacífico, no século XIX, quando a Bolívia perdeu o direito de saída soberana para o mar. As 250 mil mães que recebem bolsa família, recebem com o nome de “Juana Azurduy”, uma homenagem à mulher guerreira da independência, cantada no Brasil em uma das mais intensas canções interpretadas pela saudosa Mercedes Sosa (1935 – 2009). O milagre do gás nacionalizado está dando também o Renda Dignidade, espécie de gratificação repassada a 700 mil bolivianos com mais de 60 anos.
Neste ano de 2009, que termina hoje, vimos o governo norte-americano anunciar o reforço de mais 30 mil soldados para a conquista do Afeganistão. O jogo da ocupação militar afegã conta com um bilhão de dólares do orçamento do Tesouro estadunidense, sob a rubrica de combate ao narcotráfico. Estranho é que, invadido, o país atingiu o seu mais alto índice de dominância no mercado de ópio do mundo, com 93% de participação. O ópio, extraído de algumas espécies de papoula, é a matéria-prima da heroína, droga pesada, consumida por pessoas que perderam o sentido da vida e procuram ânimo em narcóticos.
Depois de 50 anos, somente no mês passado a União Européia conseguiu escolher pela primeira vez um presidente, o belga Van Rompuy, e uma chanceler, a inglesa Catherine Ashton. O maior drama europeu continua em muros virtuais de separação. E não estou falando dos fugitivos de Gibraltar, mas de milhares de migrantes internos que tentam cruzar os limites que dividem os membros da UE dos demais países europeus não-assimilados, tais como Sérvia, Albânia e Ucrânia. O patrulhamento nas fronteiras internas é feito com sensores, câmeras com infra-vermelho e helicópteros.
Em linhas gerais, são situações desse tipo que estão imbricadas com as nossas na teia universal. Por isso, para pensar, para querer um 2010 mais que feliz, precisamos subordinar o ano eleitoral ao longo prazo, e as questões locais, aos temas regionais e globais.