Cuzco é da cor da luz dourada
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 07 de Janeiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Mais do que um lugar de deslumbrante narrativa histórica e cultural, a cidade peruana de Cusco é um símbolo atemporal das relações humanas de poder e de trato com a natureza. Essa distinção, resultante de milênios de experiências científicas, tecnológicas, religiosas e artísticas, que gravitam na geografia concreta do império Inca, faz da eterna capital da civilização andina um centro de extrema atualidade.
Em Cusco encontramos literalmente três cidades em uma, manifestadas de forma física e vivencial em três modelos mentais amalgamados por séculos e séculos em uma mesma presença espacial paradoxalmente transcendente. A cidade respira a força dos alicerces que formaram, desenvolveram e testemunharam o fim de todo um século de domínio do Estado imperial inca de Tahuantinsuyo (meados do século XV a meados do século XVI), dos três séculos seguintes de pilhagem espanhola e de dois séculos de independência.
Passei o réveillon de 2010 com a minha família na praça principal de Cusco, em uma festa de caráter multitudinário e cosmopolita. Fogos, bebidas, música, dança, máscaras e, depois da meia-noite, uma corrida de duas voltas ao redor da praça, com chuva fina e luzes amarelas, produzindo um cenário reluzente de noite de ouro, de alma solar, a mais de 3.500 metros acima do nível do mar. Milhares e milhares de pessoas, muitas delas bebendo em garrafas de vidro espalhadas pelo chão, e nenhum registro de violência.
O costume de fazer festas em Cusco vem desde o império Inca. Conforme as fases da lua, todos os meses havia diversão em gestos de agradecimento. A mais importante de todas, presidida pelo próprio sapainca (rei dos reis) era a Festa do Sol, realizada em junho (Intirraimi), no solstício de inverno, e em dezembro (Capac-raimi), no solstício de verão, quando se comemorava também o nascimento da etnia inca. Em outubro, a festa é de culto à água (Omarraimi). Aliás, o templo da água (Tambomachay), nos arredores de Cusco, é um dos lugares deixados pela cultura inca, como símbolo de respeito à natureza.
O legado incaico está vivo e pode ser observado em atitudes essenciais, perfeitamente aplicáveis à realidade pós-comunismo (1989) e pós-capitalista (2008), que apresenta em sua tendência de configuração espaço destacado à prática de valores socioambientais. Os incas começaram a se formar antes do Estado Tahuantinsuyo e com os parâmetros civilizacionais que foram capazes de estabelecer continuam tendo muito como contribuir efetivamente para a evolução humana. Embora os imperadores incas tenham se auto-apresentados como filhos do Sol, presentes na terra para elevar a cultura e civilizar a humanidade, enquanto império, eles cometeram muitas das falhas que todo império comete em nome do direito de conquista.
Mas o que me motiva a refletir nesses dias de sol e chuva, de calor e frio, que estou passando no vale de Cusco, modelado por imponentes formações montanhosas e pelos encaixes das muitas formas geométricas dos imensos blocos de pedra polida de edificações intensas, como o templo de Sacsayhamán, é sobre alguns dos aprendizados que podemos tirar da exuberante e trágica etnohistória da confluência de povos, estendida do sul da Colômbia à região central da Argentina, povos que por um século tiveram suas atividades econômicas, sociais, políticas, religiosas e militares controladas por uma casta guerreira, apoiada em lendas, exércitos fortes, rede de acessos rápidos exclusivos (caminhos incas) e numa burocracia de eficiente vigilância econômica e civil.
O curioso disso tudo é que a etnia inca foi inventada por um grupo de refugiados que encontrou na região de Cusco um lugar de clima ideal e solo fértil para se estabelecer. Naquela época eram muito comuns os assaltos a comunidades, aldeias e reinos, por força das irregularidades climáticas e dos acidentes geográficos andinos. Eles precisavam se diferenciar das tribos que vagavam em busca de sobrevivência, para fazer alianças com os grupos locais, até conquistá-los. Assim, criaram a mística de filhos do Sol, legitimando uma relação direta com o divino e definindo parâmetros políticos com os quais, por meio de metáforas e guerras, convenceram os povos dos Andes da importância da criação de um Estado para a segurança de todos.
Os incas destacaram-se positivamente em muitos dos seus gestos e estratégias. A sabedoria tahuantisuyana tinha como princípio a aglutinação fortalecida pela assimilação dos reinos incorporados. Tratavam os líderes desses reinos como nobres e como seus parentes cerimoniais. Nos templos como o da Pachamama (Mãe Terra) havia santuários para a congregação de deuses e ídolos de todos os povos anexados.
A utilização de imagens nos lugares sagrados não tinha o apelo da adoração. Pelo contrário, elas eram postas nos nichos dos templos como representação do valor dado ao local onde eram postas. Por exemplo, no templo da água havia, entre outras, as estátuas do imperador e da sua esposa, como patrocinadores da crença de que a água é essencial para a vida. Quem chegava àquele templo e via a figura do sapainca não tinha qualquer dúvida de que deveria sagrar a água.
O princípio da posse coletiva, como um direito ancestral, era respeitado pelos incas que, mesmo lançando mão de terras para fins científicos, militares e religiosos, mantinham instruções normativas que permitiam às pessoas recorrerem à produção de outros quando por motivo de necessidade de abastecimento direto, sobretudo em casos de complemento nutricional e cerimonial. Da mesma forma, eles não permitiam que as aglomerações urbanas fossem erigidas nas áreas boa para cultivo, como os vales.
Embora tivessem o quéchua como língua oficial para a operação burocrática nos seus centros urbanos (Llaqtas), os incas formaram por liberalidade um império multilinguístico. Eram também multiestéticos. Ainda que tivessem uma arte voltada prioritariamente para a religião, para a guerra e para o trabalho, conseguiram dar identidade ao sincretismo que está na essência da cultura andina.
São muitas as atitudes reveladoras de que os incas tiveram claramente a noção de era possível criar uma civilização. E criaram. Deram materialidade à própria lenda, criando deuses à sua própria semelhança. Por isso, na hora em que a fraqueza humana se abateu sobre o império, com a briga entre os irmãos Huáscar, que era o sapainca, e Atahualpa, que queria o poder, instalou-se uma guerra civil entre deuses e não houve a quem apelar.
O declínio do Império Inca ocorreu exatamente no momento em que os espanhóis chegaram à América. Na metade do século XVI iniciou-se o domínio colonial do território inca por três séculos, com exploração, espoliação, pilhagem e saques, até que Simón Bolívar comandou a libertação, dentre outros territórios, do mundo inca, formado pelo que hoje é Peru, Bolívia (Alto Peru), Equador, parte do Chile, da Argentina e da Colômbia.
Da janela do hotel vejo logo em frente a Praça de Armas com as estruturas de poder do dominador erigidas sobre alicerces dos palácios e templos incas. No alto à esquerda, a plantação de eucaliptos que os espanhóis utilizaram para soterrar a memória das construções incas que eles desmancharam o quanto puderam, tirando pedras para a construção da cidade colonial. O sol nasce explodindo a cidade de dourado. É a coricancha (lugar cercado de ouro) que Cusco tem de mais rico, um dourado que ninguém pode roubar.