O mundo vem se tornando um grande laboratório de cidadania orgânica, conceito que uso desde 2009 para referendar a ação de alguém diante de algo que lhe interessa por se sentir parte do todo. Esta foi a leitura que fiz do episódio envolvendo jogadores do PSG e do Istanbul Basaksehir, que, há exatamente uma semana, deixaram o gramado em Paris, indignados com um ato racista praticado por membro da arbitragem contra o ex-atacante camaronês Pierre Webó, em partida pela Liga dos Campeões da Europa.
Webó, que integra a comissão técnica do time turco, foi tratado de modo injurioso e, ao ser defendido pelo atacante senegalês Demba Ba, este foi expulso. O ato discriminatório do juiz fez com que todos os jogadores dos dois times se retirassem de campo. Isso, para uma das maiores indústrias de entretenimento do mundo, significa a perda de muito dinheiro.
Porém, o que há de mais relevante nesse fato vai além do inusitado encerramento da partida e de suas consequências econômicas; a reação de desobediência coletiva em favor de um companheiro ofendido por sua cor da pele é o fenômeno principal desse evento emblemático. Intervenções objetivas como essa são fundamentais para quebrar a naturalização de comportamentos que não são mais aceitáveis.
A partir desse ato antirracista, os estudos culturais certamente passarão a observar mais atentamente o futebol como campo de reinvenção de referentes humanos, e não mais como simples atividade alienante. “O desprezo de muitos intelectuais conservadores se baseia na certeza de que a idolatria da bola é uma superstição que o povo merece. Possuída pelo futebol, a plebe pensa com os pés” (p.41), comenta o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2015) em seu livro “Futebol – Ao sol e à sombra” (L&PM).
Ora, o futebol, por sua escala planetária e por ser um indutor de seres em trânsito, é um esporte considerável para o combate ao racismo. A maioria dos times tem jogadores negros e pardos, que historicamente sofrem discriminações, mas nem sempre se sentem encorajados a reagir, por receio de ter a carreira destruída. No entanto, alguns dos que conseguiram a armadura de ídolo estão decididos a dar um basta nos tratamentos desiguais que a maioria recebe em decorrência do preconceito.
Atos e atitudes de repúdio ao racismo fortalecem o sentimento de rejeição a essa contradição da humanidade. Tudo se interliga por reverberação virtual e concreta. Casos como o dos atletas de basquete estadunidenses que, em agosto passado, se recusaram a entrar em quadra, em protesto pela morte de Jacob Blake, negro assassinado com tiros nas costas por policiais brancos; e o do piloto britânico de Fórmula 1, Lewis Hamilton, que, mesmo com sete títulos mundiais, declarou sentir-se rejeitado em seu país, vão construindo símbolos por uma união antirracista nos esportes.
Boateng, atleta germano-ganês, jogava pelo Milan em 2013 quando percebeu que a torcida adversária fazia barulho de macaco toda vez que atletas negros estavam com a bola; saiu de campo, seguido por companheiros brancos e pretos. É célebre também a reação de Daniel Alves, em uma partida do Barcelona pelo campeonato espanhol, em 2014, comendo a banana jogada contra ele da arquibancada e seguindo desdenhosamente com a jogada. E, assim, o futebol mostra que tem o potencial de contribuir para ampliar a consciência antirracista por meio de práticas transculturais pela fraternidade humana.