Trazer assunto do ano passado para este 2021 que se inicia não era a minha intenção, mas algo me soou como um alerta à luta constante que devemos travar contra toda forma de preconceito, a fim de que patrulhamentos apressados não acabem se virando contra a própria discriminação cometida por quem se propõe a defender tais causas. Tudo começou quando, na crônica “Elomar diviniza o sertão profundo” (V&A, 22/12/2020), citei versos de obras musicais fora da norma padrão.
Meu texto foi postado no Instagram oficial do violeiro baiano e, referindo-se a ele, um perfil fez o seguinte comentário: “Bravo! Mas com imenso respeito ao autor da bela análise, pergunto por que ele grafou ‘sinhô’, ‘cantadô’ e até ‘i’ (qual a diferença de pronuncia do ‘e’? Não entendi). Se o autor reconhece a erudição linguística do cantador – uma velha conhecida de seus admiradores – não seria rotulação desnecessária ou até certo preconceito? Acho que precisamos da reflexão”. E completou dizendo que palavras como ‘puchá’ chegam a doer.
A grande beleza musical e linguística da obra de Elomar não merece ser reduzida ao conceito de erudito; ela escapa desses adjetivos como uma donzela apaixonada foge de casa na garupa do cavalo de seu bravo companheiro. Em vez de preconceituoso, o recurso vocabular utilizado por ele em sua obra é uma forma de reconhecimento e de respeito à diversidade do repertório verbal do Brasil e suas múltiplas formas de fala.
Penso no sertão de Patativa do Assaré (1909 – 2002): “Dotô meu sinhô dotô / Eu nunca gostei de inredo” (Maria Têtê); e aqui não estou enredando nada, só compartilhando uma história. Penso também na Zona da Mata do Pai João, contadas por Théo Brandão (1907 – 1981): “Si seus rimão quizé cavaro pa puchá manjarra, compre um qui Pai Zuão num serve pa isso não” (A moça do sobrado).
Esse é o modo de falar da nossa realidade sociolinguística que inspira a estilística elomariana. Ao grafar os versos de suas refinadas composições com o jeito de falar das personas e com criações léxicas de ouvido, Elomar prestigia as variantes sertanejas formadoras do português brasileiro. No livro “Preconceito linguístico” (Ed. Loyola), o filólogo mineiro Marcos Bagno tem uma interpretação para esse tipo de espanto grafocêntrico. Para ele, trata-se de “uma ideologia antibrasileira, repressora e autoritária, assumida e divulgada por gente que vê ‘erro’ por todo lado”.
Bagno recorre ao célebre quadro “A traição das imagens”, do pintor belga René Magritte (1898 – 1967) – no qual, sob a representação plástica de um cachimbo, está escrito “isto não é um cachimbo” –, para associar o caso da normatização da escrita alfabética. “Ela não é a fala: é uma tentativa de representação gráfica, pictórica e convencional da língua falada”. O pesquisador ressalta com isso que os códigos de escrita não conseguem reproduzir com fidelidade elementos como entonações, ritmo e altura de voz.
O preconceito linguístico, como tantos outros, requer mesmo reflexão depois de praticado para que sua negação se torne uma consciência individual e coletiva. A inclinação para a destruição compulsiva do que parece errado joga contra esse propósito, haja vista que não existe nova realidade totalmente nascida no presente. Pelo contrário, a simples detonação do que incomoda elimina também a métrica das conquistas por igualdade; e a igualdade começa no respeito à diferença.