Dos filmes que vi um dia no cinema e que seguem comigo, há um que, de tanto fustigar minhas lembranças, acabei por vê-lo novamente no YouTube. E constatei o quanto ele tem acompanhado os tempos, tornando-se cada vez mais necessário em um mundo de atrofiadas perspectivas sociais. Falo de “O Ilusionista” (1983), do cineasta holandês Jos Stelling, que conta da relação de dois irmãos em situação de afastamento dos padrões do rincão onde vivem.
A ação move-se a partir de um conflito de aspirações entre um irmão que deseja ser artista e o outro que reage com inocente agressividade à possibilidade de dividi-lo com eventuais plateias. Os dois, no entanto, são percebidos como anormais pelos que com eles convivem. Tudo ocorre em uma atmosfera dramática, por vezes com ares cômicos, por onde se expressa o inconsciente.
Os personagens principais são incrivelmente bem interpretados pelos atores holandeses Freek de Jonge, que participa ainda do roteiro e da música original do filme, e Jim van der Woude, que é também comediante e mímico. A bela e expressiva trilha sonora de Willem Breuker coloca quem assiste no mesmo ambiente de emoções dos protagonistas, como se nos cenários da obra e na sala de casa todos escutassem a mesma música.
A sonoplastia é outro ponto de grande requinte nesse longa-metragem de Jos Stelling, principalmente por se tratar de uma narrativa essencialmente visual, sem palavras, sem frases, sem formulações discursivas. Os personagens falam por gestos, atitudes, expressões faciais, sussurros, balbucios, assobios, sons guturais e intenções de olhares.
A atualidade de “O Ilusionista” está na força das subjetividades e das impressões sobre o real vista a partir da ilusão. A imagem e o som revelam sinais, marcas e cicatrizes de uma sociedade que passou a fazer do espelho o palco de afirmação da vida. De um lado, o teatro de si mesmo como projeção de plateias, e, do outro, a loucura como negação do absurdo da realidade.
Esse é o tipo de filme cujo enredo está mais voltado para o sentir do que para o compreender. Não é à toa que os protagonistas são dois tipos muitas vezes encarados como estranhos à normalidade produtiva: o artista, mais aceitável enquanto pessoa útil, e o indivíduo com problemas mentais, predominantemente segregado. Daí o poder desse filme de colocar em xeque o próprio conceito de normalidade.
É impactante a cena da separação, quando um deles vai para o manicômio, o outro em busca do teatro e a família fica sozinha na amargura da insuportável falta que a diferença faz. As idas e vindas dos dois para dentro e para fora da realidade, ao encontro e ao desencontro com a ilusão, imantam sentimentos e emoções de completude, indispensáveis ao que se convencionou chamar de amor.
Cinema visual e sonoro, “O Ilusionista” de Jos Stelling está presente fora da tela, e não é difícil encontrar quem, acolhendo ou julgando, nele se reconheça, como a plateia de feições circenses que vaia ou que aplaude o artista e o louco no jogo entre a realidade e a ilusão. Quem desejar uma excentricidade maior, no público do teatro imaginário desse filme aparece um sujeito vaiando pendurado pelos pés, talvez para ver se, de cabeça para baixo, a realidade possa ser acessada pela ilusão.