As pessoas escravizadas no continente africano que foram vendidas para terras americanas por meio do comércio colonial de seres humanos não tiveram a oportunidade de carregar consigo muitos pertences de onde moravam. Praticamente nuas, elas transportaram dentro de si seus valores comunitários, culturas e visões de mundo, com os quais passaram a viver marginalmente ao longo de séculos.
Em busca de vínculos culturais abafados pela historiografia de modelo mental colonizador, o fotógrafo carioca César Fraga e o historiador niteroiense Maurício Barros de Castro viajaram por nove países do continente africano para um encontro com ancestralidades significativas do que se tornou o Brasil, e com realidades africanas pontuadas por refluxos de brasilidade, sobretudo em países como Benim, Togo, Gana e Angola.
A expedição percorreu cidades e povoados de nações integrantes das rotas senegalesas e congolesas do mercado transatlântico de gente escravizada: Cabo Verde, Guiné-Bissau, Senegal, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Angola e Moçambique. Um interesse comum uniu os protagonistas dessa aventura: Fraga é afrodescendente e Castro é professor de artes e pesquisador da diáspora africana.
Essa experiência de contextualização presencial resultou em uma série documental com o sugestivo título “Sankofa – A África que te habita” (Netflix), composta por dez episódios de 26 minutos, com roteiro de Zil Ribas, música original de Maurício Pacheco e direção de Rozane Braga. Cada bloco aborda a passagem por um país desse continente onde tudo começou, em termos de origem das africanidades brasileiras, o que facilita a compreensão da complexa trama de lembranças e esquecimentos nessa grande história.
Detalhes de lugares emblemáticos na relação transatlântica de tráfico de seres humanos escravizados são mostrados de um continente a outro, como o da Porta do Não Retorno, na Ilha de Gorée, no Senegal, e as ruínas do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, de onde partiam e onde chegavam pessoas comercializadas, sem expectativa de volta e sem noção de destino.
Mais do que penetrar nas principais regiões emissoras de pessoas para o trabalho escravo na colônia portuguesa sul-americana e mostrar ligações culturais profundas entre África e Brasil, a série evidencia um panorama do pouco debatido território africano de predomínio muçulmano e faz revelações desconcertantes como a do tráfico de mulheres jovens para que gerassem filhos escravizados na colônia, reduzindo os custos dos traslados.
O título “Sankofa – A África que te habita” é muito apropriado ao espírito da série. Primeiro, porque Sankofa é um pássaro mítico do oeste africano, que se movimenta para frente com a cabeça voltada para trás segurando um ovo com o bico, simbolizando o avanço que alguém realiza quando retorna para receber a potência das origens; e, segundo, porque os autores mostram com afeição e descomplicada sinceridade a África que cada brasileiro tem dentro de si.
As impressões de viagem relatadas por César Fraga e Maurício Barros de Castro somam-se a depoimentos de pesquisadores, de brincantes da cultura afro e afro-brasileira, a fotos incríveis e a animações em técnica de desenho artesanal, com narração de Zezé Motta. Produções assim são boas de ver e contribuem efetivamente com os esforços de redução do pensamento de colonizado, do racismo e do preconceito ainda injustificadamente presentes no colorismo de nossas vidas mestiças.