Diante da câmera a menina abria presentes recebidos de uma empresa fabricante de brinquedos e, nas telinhas espalhadas pelo país, milhares de outras queriam aquelas bonecas. O desejo criado seria satisfeito se elas gravassem vídeos cumprindo tarefas recomendadas pela amiga de tela e postassem no YouTube. Como apenas algumas poucas foram sorteadas, a grande maioria teve que apoquentar os pais até eles comprarem uma janota igualzinha para também poderem vesti-las com roupas da moda.
O apelo da influenciadora era irresistível, primeiro porque era feito por uma criança, segundo por envolver aspectos da vida escolar e, para completar, as personagens da promoção de venda eram simpáticas filhas de monstros de filmes e animações de terror. As doze ganhadoras dessa ação publicitária foram levadas para um encontro na sede da empresa, com direito a fantasias, mochilas temáticas, ensaios fotográficos, festa de Halloween e dança ao som da playlist Monster High.
Monster High? Isso mesmo, o nome dessa campanha era “Você Youtuber Escola Monster High” e o lema da resenha, algo como libere o monstro que existe em você, mostre o seu próprio estilo, desde que, obviamente, vestida com fantasias da linha de produtos Monster High. Isso aconteceu em 2017, e, desde então, a equipe do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, vem trabalhando, ao lado do Ministério Público, para encontrar uma forma concreta de dizer à subsidiária brasileira da Mattel que isso não se faz.
Não perdeu por se emprenhar, pois na virada do ano a empresa estadunidense foi condenada pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo a pagar uma multa simbólica de R$ 200 mil por danos morais, ficando a empresa terminantemente proibida de usar influenciadores digitais infantis de grande ou pequena visibilidade para fazer publicidade indireta de seus produtos em redes sociais.
Essa decisão da justiça chega em um momento muito especial para as pessoas e instituições que zelam pela infância, pois, em 2021, o programa Criança e Consumo completa 15 anos de intenso e efetivo trabalho em favor da infância frente ao assédio da comunicação mercadológica dirigida à criança. Há uma década e meia essa ação de cidadania vem combatendo tais ilegalidades e defendendo que a publicidade de produtos infantis deve ser dirigida aos adultos responsáveis pelas crianças.
A decisão do TJSP cria uma jurisprudência de grande valor em um tempo no qual o conteúdo digital infantil alcança grandes audiências nos canais de relacionamentos virtuais. Muitas outras empresas têm adotado práticas excessivas e ilegais de assediar crianças diretamente, com o intuito de promover produtos e serviços infantis. Denunciadas por violarem a legislação, várias já foram multadas e tiveram suas campanhas tiradas do ar, e outras estão sendo processadas na justiça.
A condenação da Mattel tem um efeito duplo, haja vista que, ao enviar produtos para uma criança youtuber e terceirizá-la para que transfira um discurso de venda às seguidoras do seu canal, a empresa comete uma dupla exploração da credulidade infantil, numa tentativa capciosa de escapar das proibições legais. Está claro no Código de Defesa do Consumidor que é abusivo o aproveitamento da insuficiência de julgamento da criança (Parágrafo 2 do artigo 37) em qualquer situação. Tratando-se, então, do uso de criança para seduzir outras crianças, não tem brincadeira, tem lei, e cabe à justiça condenar os infratores.