Há lugares que não cabem em si por serem formados por tantas partes de tantos outros. Por isso só podem existir no imaginário. Sipaúbas é um desses mundos que nunca existiram, mas teimam em não deixar de existir. Falo de uma localidade que dá nome ao recente livro do poeta e contista Batista de Lima, “Assim falou Sipaúbas” (Expressão Gráfica), onde todos os habitantes são “iguais perante a água”.
Interessados em conhecer essa terra que se destaca por uma elevada “produção de menino”, o melhor roteiro é mesmo esse livro de contos curtos e conversa comprida. De outro modo, o que se sabe é de um caminho que passa por uma parada de ônibus em Lavras da Mangabeira, onde o autor nasceu, e por outras em Icó, Jaguaribe e Russas. Além disso, sobra pouca coisa, tipo um bairro em Araripe e outro em Bodocó, por onde escorre um riacho com o nome Sipaúba.
Sipaúba é o nome de um arbusto lenhoso da mata seca da caatinga, assim como ‘macondo’, a árvore que deu nome à cidade fictícia do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927 – 2014). Também como no romance de Gabo, em que José Arcádio funda a cidade, nos contos de Batista de Lima, Otaviano Pantoja é o fundador de Sipaúbas. E para começar, logo no título a expressão ‘assim falou’ coloca os causos de Sipaúbas em linha com a lenda do profeta persa Zoroastro, na obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 – 1900).
Eis o espírito desse livro bom de ler e de matutar. Quando menos se espera já somos hóspedes de Sipaúbas e seu cotidiano regido por rapadura, queijo e bala (não confundir com bombom). Um lugar onde uma pessoa sempre é de outra: Macário de Sula, Osmarina de Venâncio, e por aí vai. Alguns nomes se repetem no trançar dos contos. Gerôncio pode ser um “conquistador de moça sonsa”, um coveiro ou um coronel machão pai de quinze filhos, sendo que o caçula acaba por se engraçar de uma boneca de louça que havia no quarto do bordel no dia em que o pai o levara para sua iniciação sexual.
E por falar em coveiro, Batista de Lima capricha nos contos dessa figura tão presente em Sipaúbas. Tem um que é negro, se veste de preto e só gosta de andar à noite. Quando ele morre, o povoado fica com a sensação de que “a partir dali ninguém fosse mais morrer”. Outro chega a oferecer à morte um pistoleiro de 98 anos, depois uma doceira de 97 e um fumeiro de 96, mas acaba indo no lugar deles. Por fim, tem a história do coveiro que passa a dormir no cemitério depois que enterra a mulher.
O autor é muito feliz na ambientação e na caracterização dos personagens. Tudo é bem vivo e atravessado por lembranças empáticas. Não há coisa mais cavilosa do que o prefeito que “não aguentava ver o santo no alto do andor e ele a pé”, nem mais picaresca do que o pensador que, convencido de que fora criado e de que existia, tornou-se “um homem que mexia com a paciência das coisas”. E por falar em coisas, Batista de Lima conta a saga do Odilon, um sujeito que, cansado das coisas, voltou-se para os nomes das coisas, abriu uma “Oficina de Conserto de Palavras” e acabou na cadeia.
Com maestria, o autor oferece a calorosa sociabilidade sipaubense como uma relíquia da poética sertaneja, na qual os aspectos mais simples do viver têm sentido existencial. Isso tudo certamente tem um quê das fantásticas lições de rapaduridade do professor Floriano. Só lendo para saber.