As águas que das chuvas caem em território cearense e que escorrem sobre o solo do nosso Estado chegam ao mar no litoral do próprio Ceará, exceto as que saem dos sertões altos, Inhamuns, e correm para formar o rio Poti, que, por sua vez, deságua no Parnaíba e, por este grande rio que separa o Piauí do Maranhão, chega ao oceano Atlântico.

Mesmo tendo a Serra Grande (Ibiapaba) no meio, essas águas atravessam a fronteira do Ceará para o Piauí porque ali existe um boqueirão com mais de cem quilômetros de extensão, conhecido também como Cânion do Poti. Essa fenda geológica estende-se pelos municípios de Crateús (CE), Buriti dos Montes e Castelo do Piauí (PI).

O boqueirão tem uma poética que se manifesta na sua grandeza espacial, nos contornos morfológicos desenhados ao longo do curso do rio, nos paredões de pedra que chegam a alcançar 70 metros de altura, nos profundos reservatórios permanentes de água, nos sítios de gravuras pré-históricas, na fauna, na flora e nos povoados que abriga.

A travessia da garganta desse boqueirão é um dos belos cenários presentes no meu livro “Toque de Avançar. Destino: Independência” (Armazém da Cultura). Foi por essa fissura de milhões de anos no relevo da Terra que nossos antepassados dos Inhamuns, do Vale do Poti e da chapada da Ibiapaba se deslocaram em 1823 para se unirem a guerreiros do Meio Norte e da Mata dos Cocais no enfrentamento do exército português, assegurando a Amazônia para o Brasil.

Isso mesmo, a região do Cânion do Poti é cheia de inscrições e gravuras rupestres, de tramas históricos, lendas e todo um jogo particular de imagens, sons, cheiros, sol e sombra em cumplicidade natural e cultural. Em trilhas ou passeios de barco, tudo é inspirador nesse lugar, desde o banho de rio nas águas silenciosas entre os penhascos ou nas águas alegres das cachoeiras nos períodos chuvosos, até o saborear de mugunzá salgado, do mel de jandaíra e da cachaça Mangueira, passando pela fabulosa Pedra do Castelo e pelas sombras frescas dos pés de oiticica.

O melhor lugar para hospedagem na região é a Reserva Natural Serra das Almas, que fica a 400 km de Fortaleza e 280 km de Teresina. Em uma área protegida com mais de seis mil hectares de vegetação arbórea, mata seca e carrasco, essa RPPN, gerida pela Associação Caatinga, tem uma estrutura de apoio alimentada por energia solar e conta com quatro trilhas ecológicas por meio das quais é possível o contato com plantas e animais nativos do bioma Caatinga.

A região do Boqueirão do Poti tem tudo para entrar simultaneamente no mapa ecológico, cultural e turístico do Ceará e do Piauí, em um planejamento compartilhado de ganha-ganha entre esses dois estados nordestinos. Mais do que um rincão perdido no tempo, esse lugar extenso e encantador é uma potência de vida orgânica a ser desenvolvida com criatividade, considerando os interesses comuns das suas comunidades e municípios, seus tempos emocionais, suas peculiaridades ambientais e sua dimensão sócio-histórica, tendo a população local como mediadora de qualidade existencial.

Um lugar sentimental e cinematográfico como esse é sempre inesquecível porque suas paisagens nunca abandonam quem por ali vive ou visita. Para as pessoas que tiveram as belezas da região do Boqueirão do Poti como primeiros cenários percebidos nas suas ligações com o mundo e que, por circunstâncias adversas, tiveram que ir embora, certamente é ainda mais profunda essa memória afetiva da mata, com trem passando e água fresca em dias sedentos.

O interior não deve mais ser visto como uma contraposição ao litoral, como algo distante. Experiências naturais e culturais como a desse sertão abençoado mais do que nunca se tornaram um valor para o mundo contemporâneo. Entretanto, faz-se necessário cuidar para que algo tão rico não seja degradado pela exploração predatória. Ceará e Piauí têm o desafio de fazer o melhor aproveitamento conjunto dessa área, por onde, ao lado do rio, passa uma ferrovia de trem de carga; mas trem cargueiro não tem alma nem põe em movimento o espírito do lugar.