Dos caminhos que nos possibilitam fazer travessias mais serenas da existência, mesmo em tempos conturbados, há aquele que nos leva pelas paisagens, pelos sons e pelas demais fontes poéticas dos lugares capazes de oferecer contemplação para o germinar de pensamentos reflexivos. Esse tipo de experimentação sensorial abre canais de percepção ao que pode estar simultaneamente fora e dentro de nós.
Ao ser provocado pelo Núcleo Audiovisual Jaguaribe (Naja/IFCE) a participar da ressignificação da Missa Sanfonada que fiz há quase duas décadas para dar de presente aos meus pais, Toinzinho e Socorro, quando eles fizeram meio século de casados, revisitei os confins simbólicos dessa obra em que o sertão emana semelhanças e contrastes entre o divino e o humano, tendo a natureza como testemunha.
Propus uma recriação conceitual da palavra Sertania, desligada inclusive do acento circunflexo de Sertânia, para ficar com a liberdade de ir além do sentido de ‘lugar distante’ e poder realçar o princípio feminino nas interconexões sertanejas. Assim como o vento é chamado de ventania quando sopra intenso, passei a batizar de ‘sertania’ o sertão que se move pela potência dos valores sagrados matrísticos.
A homenagem ao centenário do meu pai, que nasceu em 1921 e viveu 94 anos no sertão, traz em Sertania evidências da Fazenda Manchete, locus que ele definia como ‘sistema’, por nele combinar trabalho e invencionices para o bem viver. A Manchete, registrada em documentos originais como Sítio Pelo Sinal (uma referência ao primeiro nome de Independência), forma, ao lado do monólito da Pedra Lisa, uma dupla variável de grandeza extensiva que se equilibra nas ondas ensolaradas do sertão alto (Inhamuns).
Com todos os cuidados exigidos para evitar a transmissão do vírus da covid-19, voltei a entrar em contato com os ares solares de fartura, com a cor da labuta em flor, com o cruzeiro do topo do monólito que faz a sentinela da caatinga, com a mata seca em movimento e com o interior da casa que é o nosso ninho, para, numa catálise de olhares apaixonados pelo tema, dar novos rumos a essa experiência literomusical de expressão espiritual e estética.
A poesia, a imagem e a música formam em Sertania uma tríade dialógica impulsionada pela organicidade da leitura recitada de Efigênia Alves, pela pulsação do tempo no enquadramento da câmara de Marcos Vieira e no proseado da rabeca de Samuel Furtado. A troca do fole da Missa Sanfonada pelo arco tangido ou em pizzicato de Sertania tornou ainda mais atemporal a presença das sonoridades habitantes do inconsciente coletivo nordestino.
O fruto lúdico do pereiro, como marca a um só tempo rígida e sensível de uma planta de flores cheirosas, e o personagem Bento, aquele que acredita numa humanidade de mãos dadas em uma grande ciranda de paz, e que, mesmo lutando para aprender a olhar e a sentir, continua secando no Brasil de dentro, dão a Sertania uma amplitude transfronteiriça.
Entendo que o caráter abstrato de Sertania e suas sutilezas projetivas permitem mesmo a pessoas que não conhecem o sertão sentir esse lugar dentro de si e se sentir na complexidade material e espiritual catingueira. Logo, a definição desse trabalho depende muito da subjetividade que palpita no coração de cada espectador do vídeo e de cada ouvinte do audiolivro, como participantes dessa interação poética.