No quartel com o Recruta Zero
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 13 de Maio de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Entre os motivos que me levaram a dizer que queria prestar o Serviço Militar, quando completei 18 anos, está sem dúvida a influência do Recruta Zero, personagem de Mort Walker, 86, que está completando 60 anos da sua primeira publicação em 1950. Eu lia as tirinhas e as histórias em quadrinhos do soldado raso mais famoso do mundo e achei desafiador experimentar a vida na caserna. O meu Quartel Swampy foi o 23º Batalhão de Caçadores.
O Recruta Zero foi um universitário que trocou o campus por um quartel na época da Guerra da Coréia (1950 a 1953), ocorrida por interesses comerciais e territoriais dos Estados Unidos e da Inglaterra, de um lado, e da ex-União Soviética e da China, do outro, que infernizou a península asiática, ainda hoje dividida em Coréia do Norte e Coréia do Sul. No Brasil de 1979, os tempos eram de Anistia e eu estava terminando a Escola Técnica Federal do Ceará (hoje IFCE). Poderia me alistar no NPOR, que formava oficiais, mas achei que seria chato e optei pelo 23º BC.
Diferentemente do Zero, o ano que passei no quartel não foi de exercício da preguiça, mas de muita atividade. Foi no quartel que eu tirei a carteira de motorista, disputei futsal nas olimpíadas do exército, aprendi a atirar com fuzil e pistola de verdade, fui cabo enfermeiro e montei uma charanga, que acompanhava a famosa banda de música do 23º BC. O que fiz de semelhante ao Recruta Zero foi negar os excessos dos superiores, procurar desconstruir as regras que descambam da disciplina para a opressão e desacreditar da guerra.
Na “Canção do Exército” fui surpreendido com uns versos que dizem assim: “A paz queremos com fervor / A guerra só nos causa dor”. E quanto mais eu ouvia esse hino, mais eu procurava ler as revistas do Recruta Zero para tentar entender o que estava acontecendo. E, evidente, que eu só conseguia ficar mais confuso. Somente anos depois descobri que o deboche do Zero era parte contra a truculência de certos militares com os subordinados, mas que havia algo mais; havia uma negação ao militarismo do país que mais plantou guerras nas últimas seis décadas.
A minha simpatia pelo Recruta Zero estava no seu caráter de anti-herói, embora ele fosse conterrâneo dos promotores do mercado da morte, os mesmos que por décadas se apresentaram ao mundo como “mocinhos”. E como anti-herói, ele conseguiu sobreviver ainda às guerras do Vietnã, do Líbano e do Iraque, aos bombardeios da Somália e do Kosovo, as invasões de Granada e do Panamá, à ocupação do Afeganistão, ao patrocínio da intriga armada entre Colômbia e Venezuela e à demonização do Irã, acusado de querer ter o que os Estados Unidos têm, que são armas nucleares.
Hoje, com a derrocada da imagem simulada dos Estados Unidos, a grande mudança que o presidente Barack Obama poderia fazer seria trocar o Capitão América pelo Recruta Zero. Talvez assim pudesse justificar o Prêmio Nobel da Paz que recebeu em 2009 por um arrazoado de intenções e não por mérito devidamente comprovado. Com o Zero no comando, os estadunidenses dariam a volta por cima e poderiam dizer ao mundo que estão dispostos a deixar de viver à custa da destruição dos outros. Para aceitar um anti-herói, a terra do Super-Homem e de todos os super-heróis da Liga da Justiça (analogia da OTAN) precisaria se reinventar.
O aniversário de 60 anos do Recruta Zero não deixa de ser uma boa oportunidade para pensarmos na ética da guerra. A impressão que tenho é que a violação das culturas regionais, especialmente quando motivadas por disputas geopolíticas e econômicas, já é vista com muitas reservas em todo o mundo. Depois da desmoralização de justificativas para o fomento à guerra, como a de que o Iraque tinha armas químicas, a situação degringolou para o total descrédito.
Não sei se é o caso de lamentar ou não, mas Washington está cada vez mais parecida com a caserna onde o Zero foi parar. Quem tem a força não é o General Dureza, distraído superior que vive assediando a Dona Tetê, a secretária de provocativas minissaias e decotes salientes. Quem tem a força é o Sargento Tainha, com sua autoridade sem freios e seu cachorro Otto, sempre uniformizado e disposto a entregar recrutas que saem dos eixos. Nesse desfile de tipos não falta o Tenente Escovinha, pronto para agradar aos superiores, com seu espírito carreirista. É essa a cultura do império em decadência, que o Cosmo e o Quindim, os galanteadores do quartel, tentam passar em lábia para as nações ressabiadas por tanta dissimulação.
A esperança só pode estar no Zero. Com ele, o quartel poderia tomar novos ares, e personagens como o matuto e ingênuo Dentinho, o pensador Platão, o cozinheiro Cuca e o Tenente Durindana, com seu jeitoso cavanhaque e cabelo black-power, certamente tornariam a vida bem mais humorada do que com a grosseria do Tainha. A turma do Recruta Zero não é a turma da guerra, por isso o “não” que ele pronuncia em cada quadro, em cada tira, em cada revista, mesmo quando sem palavras, mesmo quando em simples piada visual, tornou-se um incômodo para o militarismo, essencialmente vinculado à indústria de armas. Para os que se beneficiam diretamente da guerra, esses 60 anos de Recruta Zero representam uma ameaça a autoridade brutal.
Durante o ano que passei no 23º BC, convivi com muitos soldados com as características do Recruta Zero. Lembro que certa vez eu estava de plantão na enfermaria, quando recebi um telefonema do comandante da guarda. A ordem era que eu requisitasse a ambulância para ir pegar um soldado no bairro Granja Portugal e levá-lo ao Hospital Geral. Era um final de semana. Acionei o soldado que estava de plantão na garagem e saímos para cumprir a determinação. De repente, escutei a sirene e perguntei ao Gilberto, o soldado motorista, se havia mesmo necessidade de ligá-la. Ele disse que sim, pois soube que o recruta que íamos apanhar estava muito doente e era irmão de um sargento, que estaria nos aguardando.
O endereço que tínhamos era muito complicado. A rua começava em um local e não tinha continuidade; depois retomava lá na frente… Enfim, quando estávamos chegando à casa do soldado, encontramos com o irmão dele, o dito sargento. Naquele momento descobrimos que o suposto soldado doente estava todo arrumado para ir a uma festa. Não entendemos nada. Preparamo-nos para retornar ao quartel, quando o Gilberto virou para mim e perguntou se eu faria alguma objeção se passássemos na casa dele, no bairro vizinho, no Henrique Jorge, para pegarmos umas revistas em quadrinhos. Como era caminho, respondi que não via problema.
Passamos na casa dele e retornamos ao quartel cheios de interrogações, embora não tivéssemos dúvidas de que tinha sido um trote. Explicamos o ocorrido ao comando da guarda, fomos jantar e cada qual retornou ao seu lugar de plantão, ele na garagem e eu na enfermaria. O tempo passou e aquele episódio perdeu-se entre tantos outros. No dia em que deixamos o quartel, encontrei com o Gilberto na saída e conversamos um pouco na calçada da avenida 13 de Maio. Recordamos algumas coisas e lembrei do trote do soldado doente. Ele olhou para mim com a cara de quem queria fazer uma revelação e eu me antecipei: “Então foi você quem passou o trote no comandante?”. Ele certificou-se de que não havia ninguém por perto e disse: “Não acontecia nada naquele plantão e eu estava doido para ler a revista nova do Recruta Zero”. Como àquela altura saber disso não daria mais cadeia, caímos na gargalhada.