O crescimento nas redes sociais de grupos agressivos que, normalmente disfarçados de atitudes justiceiras, disparam a torto e a direito palavras ofensivas, ferindo, matando e cometendo suicídio relacional, mostra o quanto temos sido consumidos por surtos de raiva, a respeito dos quais é urgente refletir.
Muitas são as variáveis que levam ao estado de perda da percepção do que estamos gerando com esse comportamento, mas uma delas certamente está associada ao fato de estarmos todos presos à cara ou à coroa de uma mesma moeda de interdependência política, voltada tão somente para adeptos.
É difícil para a sociedade encontrar motivação para o engajamento partidário ou para o exercício da cidadania orgânica em meio a uma tempestade de insultos e hostilidades que fazem do cotidiano do País um drama permanente de irritabilidade sob a pressão de repulsas vitais. Nesse jogo da moeda, a regra básica de convivência é matar para não morrer.
Foi assim que atiraram no debate, e, sem debate, o ato de pensar vai cedendo lugar à conduta ofensiva. Ao tratar do sentimento da ira, o psiquiatra cubano Mira y Lopez (1896 – 1964) adverte em seu livro “Quatro gigantes da alma” (Ed. José Olympio, 1982) que muitas vezes nossa ofensiva é vista por nós apenas como contraofensiva e perdemos o controle das palavras e dos atos.
A insistência no conceito indivisível da moeda de faces lulista e bolsonarista cria um clima desencorajador em sua perspectiva de duas únicas probabilidades. A despeito da sentença aleatória do resultado, ela sugere um alto risco de repetição na próxima rodada pela possibilidade de reincidência do evento que a criou. Ressalte-se que a moeda política brasileira foi entortada nas últimas jogadas e que a cara pode não estar no mesmo estado de preservação da coroa.
Diante desse cenário de intensificação regressiva, cabe à sociedade civil o esforço possível para escapar do sistema de moedas vigente e abrir espaço para um sistema de bandeiras, por meio do qual possa contemplar outras variáveis. Uma vez que moedas restringem o campo político a cara e coroa, as bandeiras flutuam ao vento.
Moeda é dureza, ideia-fixa e autoritarismo, enquanto bandeira é maleabilidade, idealismo e democracia. As propriedades simbólicas de cada uma já inspiram a grande diferença entre o determinismo e a flexibilidade. Entre as tragédias sociais e políticas que estão destruindo o Brasil, a pandemia da ira e da raiva é talvez a mais significativa delas porque a vacina para isso está na isenção dos que consideramos culpados pelos nossos aborrecimentos e frustrações.
No livro “O surpreendente propósito da raiva” (Palas Athena, 2019), o psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg (1934 – 2015) nos convida a pensar sobre os gatilhos da nossa contrariedade a partir da observação dos pensamentos julgadores que inundam a nossa mente. Ou seja, a principal razão da impertinência demolidora atual está na mania de apartar, cancelar e ferir uns aos outros quando estamos zangados.
Esse comportamento punitivo nos impede de fazer uma política atraente. “Quando verbalizamos julgamentos sobre outras pessoas apontando seus erros elas ficam na defensiva e tendem a evitar a conexão conosco” (p.23). O que Rosenberg alerta com essa afirmação é que o enfurecimento do outro elimina a possibilidade de motivá-lo ao que acreditamos. Mas antes de tudo isso, precisamos de bandeiras com propósitos claros e agregadores.