Um pacto pelo sentido de cidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Junho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O lançamento na segunda-feira passada (31/5) do “Pacto por Fortaleza: a cidade que queremos até 2020”, pelo presidente da Câmara Municipal Salmito Filho (PT), reacende um velho desejo da cearensidade de pensar o futuro com equidade e paz. Em 1997, com a realização da Conferência de Busca do Futuro – Construindo o Ceará 2020, em Beberibe, a sociedade quis, mas o governo não quis; em 2007, com a promoção, também em Beberibe, do Fórum Ceará – Ideias para um futuro melhor, no horizonte de 2027, o governo quis e a sociedade não quis.
Com relação a Fortaleza e sua região metropolitana, em 1997 criou-se no ambiente do Pacto de Cooperação, o Planejamento Estratégico de Fortaleza, Planefor, com o objetivo de mobilizar a comunidade pela realização do seu sonho de cidade, como espaço articulado de referências comerciais, turísticas, industriais, logísticas, culturais e de serviços das regiões Norte e Nordeste. O Planefor reunia os governos municipal e estadual, entidades dos movimentos sociais, empresas, órgãos públicos e instituições privadas, organizações não-governamentais e cidadãos de espírito público.
As estratégias do Planefor foram desenvolvidas com base em cinco eixos temáticos: 1) Região metropolitana integrada; 2) Região metropolitana empreendedora e competitiva; 3) Educação para o desenvolvimento; 4) Sociedade solidária e gestão compartilhada; e 5) Cultura, identidade e auto-estima. Diagnósticos e soluções foram levantados e apontados em todas as áreas, num total de 180 projetos. Aproveitou-se muito pouco desse grande esforço e o Planefor desarticulou-se quase uma década depois.
Movimentações de orçamento participativo daqui e debates de integração ao sistema nacional de cultura dali, o certo é que Fortaleza continua sem um conceito de cidade. Por isso, qualquer intervenção que precisa ser feita no nosso território urbano é sempre coberta de chiliques e tensões desnecessárias, a exemplo do caso do estaleiro do Titanzinho… será?, do Pirambu… será?, da Barra do Ceará… será?, da praia do pontão… será?. Este é um exemplo típico da fragilidade conceitual de uma cidade que vem crescendo e crescendo e crescendo irresponsável e desordenadamente.
É, portanto, muito bem-vinda a iniciativa do vereador Salmito Filho, de encomendar à Universidade Federal do Ceará para, com o apoio de entidades civis, produzir em seis meses (até novembro) estudos que norteiem os rumos de Fortaleza com base em cinco eixos temáticos: 1) segurança pública e cidadania; 2) desenvolvimento econômico e social; 3) qualidade de vida; 4) mobilidade urbana; e 5) resíduos urbanos e geração de renda. O pragmatismo dessa proposta indica que aprendemos a lição de que é preciso firmar os pés no chão antes de voar.
O Pacto por Fortaleza propõe antes de tudo uma busca da compreensão do sentido de cidade, por meio da convergência de interesses na elaboração de projetos e na construção de uma agenda comum que leve à articulação de esforços entre os poderes públicos e a sociedade. Com esse pacto concretizado, a Câmara Municipal estará oferecendo a Fortaleza uma base para um processo de gestão estratégica socialmente orientada, capaz de mudar positivamente a face da cidade, pela visão de longo prazo e pela criação de um novo ambiente urbano.
A ideia geral e as áreas-alvo me parecem adequadas para o momento. Acredito, porém, que o Pacto por Fortaleza poderia ter essa parte de misto de pesquisas acadêmicas com debate sobre a cidade que queremos, como uma etapa associada à validade do atual Plano Diretor (2018), como bem definido por Salmito Filho, mas, o pacto em si poderia referencialmente ter seu prazo um pouco mais elástico. Penso em um ano-símbolo como 2026, data em que a cidade completará 300 anos. Nessas estratégias de construção de cumplicidade, de apropriação cidadã, os recursos simbólicos tornam-se fundamentais para o sucesso de empreitadas como essa, que pode resultar em uma cidade bem planejada, com urbanismo decente, uso democrático dos espaços públicos, novas formas de organização social e cultural e com melhores condições de vida da população.
Tomando o exemplo de Curitiba, que tem um histórico reconhecido de cidade administrativamente bem resolvida, o programa “Cidades Inovadoras” está sendo feito em duas perspectivas complementares e convergentes: uma, conhecida como Projeto de Desenvolvimento Local, procura mobilizar e capacitar comunidades de forma que elas próprias construam a sustentabilidade urbana; enquanto outra, chamada de “Curitiba 2030”, objetiva preparar a cidade para a atração de investimentos, numa parceria da prefeitura municipal, com o Sistema Fiep e a OPTI (Observatório de Prospectiva Tecnológica Industrial da Espanha).
O próprio projeto “Brasil em 3 Tempos”, do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República foi estruturado considerando que as mudanças sociais desejadas e indispensáveis requerem um processo gradual. Lançado em 2004, os objetivos da Nação foram pensados em três datas referenciais: 2007, como início de uma nova administração (segundo mandado de Lula), 2015, quando ocorrerá a conferência das “Metas do Milênio”, da ONU; e 2022, momento histórico em que serão comemorados os 200 anos da independência do Brasil. O “Brasil em 3 Tempos” também parte da definição de uma base social, cultural, econômica, territorial, institucional, ambiental e internacional como dimensões indispensáveis ao desenvolvimento.
Ao trazer à memória todas essas experiências de pactos, fico pensando se não seria o caso do Pacto por Fortaleza ser trabalhado em dois tempos. Uma primeira etapa, com a data de 2020 e com os cinco eixos que a UFC vai trabalhar; e uma segunda etapa, de consolidação das recomendações, culminando em 2026, no trigésimo centenário da cidade. Para essa segunda etapa eu incluiria dois eixos temáticos: um, voltado especificamente para a cultura como fator estruturante das relações sociais, considerando que a governança democrática da diversidade cultural (ao lado das dimensões econômica, social e ambiental) é hoje entendida mundialmente como o quarto vetor do desenvolvimento; e o outro, focado especificamente na mobilização social, tendo em conta que na geopolítica multipolar da atualidade, uma condição elementar de sobrevivência é a emancipação social.
O futuro do planeta passa obrigatoriamente pela maneira como trataremos o desenvolvimento das cidades. Então, a descoberta do que aspiramos para Fortaleza em 2026 e o que estamos dispostos a fazer por ela e por nós, tem no Pacto proposto pela Câmara Municipal um grande aliado. A reinserção da universidade nos processos de formulação, implementação e avaliação da ação política é também um ponto bastante louvável no intento capitaneado pelo vereador Salmito Filho.
O Pacto por Fortaleza, em um tempo ou em dois tempos, mais do que uma referência para a macrogestão da cidade, mais do que um feixe de políticas transversais, caracteriza-se como uma expressão de exercício maduro da cidadania, do pensar o coletivo de modo estruturado e da crença no esforço coordenado entre afins e contrários. Se não esbarrar apenas nos diagnósticos, esse pacto tem tudo para contribuir efetivamente para a revitalização da imagem de Fortaleza, como um lugar fundado no debate e na corresponsabilidade, que merece destaque por ser entreposto cultural, econômico e ecológico, mas, sobretudo, por ser uma cidade de valores multitudinários.