O Brasil passa por um fenômeno estrutural político tão drástico quanto inquietante. No epicentro de inflexão da sua metanarrativa de origem colonial está um governo que prioriza o aniquilamento da democracia, a degradação dos biomas nacionais, a ausência de fronteiras para espoliações por parte do agronegócio e o extermínio oportunista e acelerado do maior número possível de desafortunados do país.
Como isso tem ocorrido sem freios, aumenta a urgência e a necessidade de muitas teses e debates para que se chegue a um entendimento do que pode ser feito diante do competente método despótico vigente e sua produção de embaraços emotivos e cognitivos na população, onde o crer desconjura o saber e o conhecimento, infernizando a vida social e despedaçando a esfera pública.
Tais atos me levam a pensar que a conivência das elites com os desatinos do presidente da República e seus asseclas está associada ao temor de se ver compelida a pensar com a própria cabeça e a participar da formulação de uma proposta de país que pudesse estar à altura dos avanços dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, que, mesmo tendo desmilinguido antes de amadurecer, passou a assumir espaços substanciais de poder.
No livro “A revolução burguesa no Brasil” (Editoras Kotter e Contracorrente, 2020), o pensador e político paulistano Florestan Fernandes (1920 – 1995) reflete com lucidez sobre o padrão estrutural da sociedade brasileira e suas variantes de organização de poder. Mostra, inclusive, como o senhor de engenho atuava no processo colonial apenas como agente econômico de expropriação.
Com a Independência (1822) surgiu o agente negociante importador e exportador, que, juntamente com muitos burocratas, teve destaque na mudança do estatuto colonial para a ideia de formação da sociedade nacional. Inclinado a transformar a acumulação de riqueza em fonte de poder, mantinha o regime patrimonialista, a escravatura e a repressão como técnica de controle social e político.
Assim como o senhor de engenho, esse senhor-cidadão passou a atuar no circuito da mercantilização, também limitado ao âmbito interno. Ambos nunca deixaram de ser intermediários na drenagem de riquezas para fora do País. Florestan caracterizou de autocracia a maneira com que as elites nativas se juntaram para manter a estruturação das desigualdades, agindo com virulência quando ameaçadas de perder riqueza, poder e prestígio.
Nas últimas décadas, embora o proletariado tenha enfraquecido por assumir novas formas de servidão, atreladas ao consumismo e ao desejo de ostentação, e as conquistas sociais encontrem dificuldade de coesão em torno do conceito de sociedade de bem-estar, o senhor-cidadão sente-se mais confortável com um capataz imbecil, mas bom de trabalho sujo, do que evoluir no processo democrático.
Na dúvida sobre a própria capacidade de liderança, a elite nativa tem optado em ficar com as sobras do entreguismo e parece dar meia-volta rumo ao tempo em que não precisava se explicar pelo que fazia. Talvez hoje até ache que a destruição ambiental com apoio do Ministério do Meio Ambiente esteja exagerada e que o Brasil pudesse ter mais unidades de conservação, mais reservas e melhor aproveitamento do seu potencial bioeconômico, mas o senhor-cidadão prefere assumir uma covarde condição análoga à de senhor de engenho, fingindo que não tem nada a ver com isso.