Karina Buhr foge do vazio
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Junho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
De tanto ouvir em mp3 algumas músicas da compositora e cantora Karina Buhr fiquei curioso para conhecer o cd “Eu menti pra você”, no qual ela atualiza a agenda da juventude brasileira, fugindo dos padrões predominantes no mercado fonográfico nas últimas décadas. Com a chegada da Livraria Cultura a Fortaleza, consegui finalmente comprar o primeiro álbum-solo dessa artista pernambucana, nascida na Bahia e radicada em São Paulo. Depois de pegar na capa, de manusear o encarte e acompanhar faixa por faixa, em balanço de rede na varanda, posso dizer que valeu por esperar.
Na proposta artística de Karina o sentir é matéria viva. “Eu menti pra você” é um exercício estético que aproxima música de teatro. Em poética prospectiva ela põe em cena um estranhamento orgânico, sem próteses de gravadoras, para firmar e afirmar sensíveis reações vitais ao niilismo reinante. Com a delicadeza dolorosa do lirismo vangoghiano e a não higienização sonora do espírito rabequeiro, ela ascende a um contra-niilismo mais existencial do que representacional. Trabalha com ecos de ondas cerebrais em mobilização de sentimentos e sensações para cantar, não apenas com o corpo, mas com cada célula do seu organismo.
Karina canta baixinho, sem forçar os pulmões, sem querer mostrar que é cantora; canta com naturalidade, canta com sotaque. Foge do vazio da homogeneidade e entra em sintonia com o mundo múltiplo em construção, no qual nada pode ser mais cosmopolita do que um sotaque. Para enveredar na malha da música urbana, o que ela tem de mais denso e original é o fato de ser filha da cena pop e regional pernambucana, agitada pelo mangue beat, na qual brotou a Comadre Florzinha, banda liderado por ela, na renovação da música de raiz pela trama sonora popular. Contando, claro, com a bênção do frevo, na gandaia de ritmos do carnaval de Recife e Olinda.
Desprendida do mundo abstrato das velhas novidades, Karina Buhr, que também é atriz com passagem pelo teatro oficina, dá vazão a uma musicalidade tecida em versos dramáticos que oscilam entre o tédio e a expectativa de aceitação. Gosto de ouvir seu paradoxo de falar a verdade quando diz que mente. Com base emocional de prazer modulada pela experiência, seus caprichos, inspiração e centros de recompensas não só asseguram que especifique o que não quer, como recomendam que manifeste seus anseios e desejos.
Os arranjos do disco parecem acompanhar os sinais vitais de Karina na temperatura do corpo, pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória e na dor. Isso eleva o quadro clínico e artístico do cd “Eu menti pra você” ao patamar dos álbuns que têm clima próprio, o que é bom como plataforma para lançar o nome de Karina Buhr com letras maiúsculas na órbita legítima da música plural brasileira. O trabalho conta com o auxílio luxuoso de uma superbanda, formada por músicos de primeira linha, como os nossos queridos Dustan Gallas e Fernando Catatau.
A percepção essencialista da música de Karina nos leva a detalhes das áreas de manobras da vida e do viver, como um antídoto ao niilismo de uma época em que as pessoas se sentem existencialmente paralisadas diante das incontáveis possibilidades dos prazeres efêmeros. Com a força da sua fragilidade altiva, a cantora transmuda o que seria mal-estar, por deixar claro o que pensa, o que sente e o que quer. Ao encarar de frente a angústia e a desesperança ela foge do vazio, entregando-se de forma extremada ao seu corpo, sua mente, sua alma e à transvalorização do sentir e do amar.
A negação ao niilismo, enquanto ausência de valores, me parece bater no coração da música de Karina. Mesmo quando ela chama para si o ímpeto da razão desesperada, cansada de esperar, existe um querer em busca de realização: “Minha fúria odiosa já está na agulha / E um dia poderosa poderá dizer / Que acha tudo muito pouco”. O mesmo ocorre com a faixa título, na qual ela questiona o pecado original e assume a mentira como alternativa as verdades desacreditadas: “Você não podia esperar ouvir uma mentira de mim / Que pena, não sou o que você quer de mim (…) Mas eu tenho ainda um grande amor pra te dar / Quero saber se você aceita”. Com isso, ela matricula um valor e, embalada por um cupido travestido de trompete em batida de marchinha, supera o romantismo retardado para acordar com guitarras pesadas.
Outra característica que chama a minha atenção na obra de Karina Buhr é o aguçado espírito crítico, digamos, 360 graus, que ela revela ao romper com um estigma imposto à juventude; o estigma de que é possível ser capaz de tudo sem necessidade de ideais ou emoções verdadeiras. “Eu Menti pra Você” é uma proposta de amor, que nega a maneira superficial e possessiva de amar. A autora e intérprete fantasia a não-fantasia e assim desacomoda a cômoda proteção das tribos de afinidades eletivas. Em “Mira Ira”, balada conduzida por piano, ela diz: “Tá tudo padronizado / no nosso coração / Nosso jeito de amar / pelo jeito não é nosso não”.
Ela tem razão, está tudo padronizado. Até aquele romantismo de navegar na internet com referências próprias, procurando informações e procurando amigos, caiu por terra. Quer online ou offline, os hits da rede estão uniformizando o cotidiano mais do que a televisão foi capaz. A predominância é das informações de interesses dos controladores do sistema, que oferecem inclusive listas de amigos. Diante desta confusa realidade, Karina toca a maçante e repetitiva “Telekphonen”, na língua do seu avô alemão, para mostrar o vazio de alguém que liga para seu amor, se conecta com quem ama, mas não sabe o que dizer.
Ainda dentro da veia satírica que pontua a obra autoral de Karina Buhr, vale destacar a “Ciranda do Incentivo”, com a qual a artista faz ironia sobre os estereótipos que de certa forma passaram a nortear os editais da chamada economia da cultura: “Eu vou fazer uma ciranda / pra botar no disco / na lei de incentivo à cultura (…) mas eu não sei negociar / só sei tocar meu tamborzinho e olhe lá”. Mais do que o sentido de dança de roda infantil, a palavra ciranda pode ser entendida também como grana que rola solta em algum sistema. O resultado é uma divertida ciranda funkeada, com base eletrônica, teclados e guitarras que, certamente, não seria contemplada pelas leis de incentivo à cultura.
A tragédia da guerra também está na pauta de “Eu Menti pra Você”. Com a mesma inquietação de Edvaldo Santana em “Raios do Oriente Médio” (Reserva de Alegria), diante de “Sonhos e destinos que terminam antes”, e com toques de ludismo que lembram o saudoso Gianni Rodari (Um bolo no céu) imaginando o dia em que fizerem bolos em vez de bombas, Karina tenta tristemente ninar as crianças das cidades iraquianas bombardeadas: “Não importa seus amigos anjos / nem sua vontade de comer um bolo / Dorme logo antes que você morra”. Depois, passeando pela linguagem teatral e musical de Bertold Brecht e Kurt Weill, ela escarra o rock-marcial “Soldat”.
A fuga do vazio, do niilismo, requer espaço para a individualidade, sem isolamento: “Você não esperava / mas eu esperei / e a gente se desesperou”, canta em “Plástico Bolha”, um reggae em pulsão de ska e frevo, que se complementa na balada dolente “Bem Vindas”: “Nessa tarde que passa mansa / e despreocupada comigo”. Karina quer andar, existir, cantar, “pular contra a vontade do chão”, respeitando a resistência perfeita do corpo humano: “Se bate de leve dói, se bate de com força mata”. Salve, Karina.