Uma geografia das figurinhas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 24 de Junho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Das boas movimentações advindas com a realização da Copa do Mundo de Futebol, a agitação das crianças para completar os álbuns de figurinhas destaca-se por seu potencial mobilizador, integrador e educacional. Mobilizador, por mexer com a meninada em encontros de trocas de figurinhas; integrador, por instigar o diálogo entre as crianças, destas com os pais e dos pais entre si; e educacional, por possibilitar o exercício da busca, além de agradáveis brincadeiras etnológicas e de geografia humana.
Em Fortaleza, na Copa passada, o ponto quente das trocas de figurinhas era a banca do Cabeça, na avenida Virgílio Távora. Pouco interessava se o lugar era apertado demais ou virado para o sol, filhos e pais se apertavam como podiam na permuta de figurinhas repetidas. Uma coisa que chama a minha atenção nesse jogo da troca é a confiança que as crianças têm ao entregar largadamente seus pacotes de repetidas umas para as outras. Em várias circunstâncias percebem-se pais reticentes com essa atitude virtuosa de meninas e meninos.
Na Copa atual, os pontos de troca de figurinhas se multiplicaram. As bancas de jornais e revistas continuam sendo as âncoras, mas em diversos casos o fuzuê não acontece mais no seu interior. Na Praça Portugal, a banca localizada logo em frente ao antigo BEC tornou-se um desses pontos. O cantinho é sombreado, tem o frescor das árvores ao vento e bancos para as pessoas sentarem. Um senhor com montes e montes de figurinhas facilita a busca dos interessados em vender ou trocar.
As crianças chegam com seus álbuns, pacotes de repetidas e gabaritos com a marcação das que faltam. Querem o goleiro de uma seleção tal ou o escudo que representa um determinado país. É impressionante como elas tratam da questão dos países com simplicidade. Citam nomes de jogadores e de seleções em diversas línguas. Fazem isso com a intimidade que a educação permite quando bem conduzida. O álbum da Copa na África do Sul está em inglês, mas traz o nome de cada país em diversos idiomas. E as crianças se divertem com isso. Chegam até a deduzir que em 2014, quando a Copa for ser realizada no Brasil, o álbum será em português. Quem dera, quem dera…
Outra banca que ganhou notoriedade nesta Copa, por catalisar trocadores de figurinhas, é a da parte mais nova do Parque do Cocó. Também sombreada, com espaço suficiente para filhos e pais interagirem e área de estacionamento mais generosa. O fluxo de trocadores de figurinhas naquele ponto tornou-se intenso. Lá também tem uma moça com maços organizados por número. Ela faz trocas e vendas na calçada, e, assim como o homem da Praça Portugal, é uma boa opção para quem está faltando poucas figuras e não aguenta mais comprar pacotes fechados com repetidas.
Dá gosto ver o entrosamento de tantas crianças que não se conhecem; entrosamento motivado pelo simples interesse de trocar figurinhas. É um acontecimento desinibidor e gerador de vínculos, pois em alguns casos trocam-se números de telefones para marcar novos momentos de trocas. Aliás, em termos de sociabilidade, a contribuição da troca de figurinhas é algo muito precioso para adultos e crianças, quer no apertadinho da banca do Cabeça e da que fica em frente à sorveteria do Juarez, na avenida Barão de Studart, ou nas praças e parques, onde há bancas de revistas e jornais.
Em casa, o momento de colar as novas figurinhas é outra experiência maravilhosa de integração entre filhos e pais. Nas primeiras sentadas, com o álbum ainda praticamente vazio, tratamos de ter à mão um globo terrestre. Cada pacote aberto que trazia um jogador de um país pouco conhecido, nos levava a procurar onde ele fica no mapa. É esplêndida essa viagem intercontinental pelo encanto do esporte, pela mística da Copa do Mundo. Os meninos revelam o que sabem de geografia e perguntam o que querem saber.
Conforme o álbum vai se completando, suas páginas começam a mostrar naturalmente a existência de seleções formadas basicamente por jogadores negros, outras por brancos, outras com atletas de olhos puxados e àquelas misturadas para mais ou para menos. A conversa que vem à tona com essas diferenças é uma verdadeira farra etnológica. Os países ganham vizinhos de características e são realçados em continentes, regiões e multipolos de um só planeta. Nessas horas, o ato de torcer é Jabulani, o nome da bola desta Copa, que quer dizer comemoração.
Depois do Brasil, é comum a torcida pelos nossos vizinhos latino-americanos. Até pela rival Argentina, quando esta joga com países de outros continentes, que não a África. As seleções africanas contam com a simpatia das crianças, talvez porque elas escutem constantemente que, depois dos times de seus países, a África torce pelo Brasil. Tem ainda a figura mítica de Nelson Mandela ajudando nessa simpatia, por representar a paz entre tantas notícias de guerras. Essa descoberta saudável de afinidades regionais e culturais é um tanto prejudicada pelos exageros que parte da mídia faz com relação aos argentinos, confundindo a noção de rivais no esporte com a perigosa e indesejável percepção de que eles são nossos inimigos.
Ao observar as conversas e ao conversar nesses encontros de trocas de figurinhas e em casa na hora de colar cada uma delas, página por página, seleção por seleção, indo e voltando, reforço em mim a compreensão do alcance do esporte como aglutinador da vida social, como animador de comportamentos sadios e como fonte de conhecimento da geografia humana mundial. Nem mesmo os interesses escusos, que podem manipular resultados em função da produção, divulgação e comércio de atletas tem sido capaz de sufocar essa grandeza do futebol.
O mais lamentável no mercantilismo aloprado de craques é o fato de não haver uma preparação psicológica do atleta-produto de exportação. É triste o desserviço que prestam à cultura e à educação atitudes medíocres de alguns jogadores da seleção brasileira. No amistoso contra a Tasmânia, após sofrer uma falta, um atleta brasileiro deu uma cotovelada desnecessária no jogador adversário que, até aquele momento, poderia tê-lo como ídolo. Fez isso provavelmente apenas por se sentir superior; quando a superioridade no esporte se dá pela arte do jogo, pela habilidade da perna invisível e pela eficácia das jogadas.
É certo que não há muito o que esperar de um time dirigido por um técnico de alma pequena, como o Dunga, porém, ao ter a autorização para levar o nome do Brasil e ser historicamente reconhecida como a melhor do mundo, a seleção brasileira tem a obrigação de preparar seus atletas para que tenham consciência do seu papel-modelo. E não é esse negócio de ficar dando uma de bom-mocismo, com marketing religioso, não. Assumir um papel-modelo no esporte é ter companheirismo entre os pares e respeito pelo torcedor.
Tudo isso aparece no jogo sem cartolas das figurinhas. Quando uma criança adesiva a imagem de um atleta na página do seu álbum, ela está fixando o que aquele jogador significa para ela. No momento da troca e da colagem das figurinhas percebe-se o tanto que os atletas têm contribuído ou não para a formação das nossas crianças. E a impressão que tenho é que, via de regra, o plantel da seleção brasileira, quando não dá maus exemplos, tem contribuído menos, mas muito menos mesmo do que tem o dever e a obrigação de contribuir. A esperança é que, assim como a decoração verde e amarela das ruas, os álbuns de figurinhas ainda continuam ricos e animadores.