Nas brincadeiras da cultura popular, trava-língua é uma frase feita com palavras de sílabas difíceis de se pronunciar rapidamente. Sem o hífen, “Trava Línguas” é o título do álbum que a cantora e compositora Linn da Quebrada, 31, acaba de espalhar nas plataformas de música digital. São 11 faixas por meio das quais, sem hesitação, ela atravessa a rua da hostilidade transfóbica para dar significação ao que sente no ethos em que se inscreve.
Movida por uma fala trans autêntica, radical e libertária, ela se joga na complexa trama de gêneros com o sentimento de luta de quem sabe que resistir é muito pouco. Não se apresenta como mensageira da comunidade de afinidades LGBTQIA+, mas como uma voz diante da asfixia da discriminação social, em sintonia com os anseios das pessoas perseguidas, depauperadas, sem-posses, desalojadas; das que nunca têm razão.
Produzido em cumplicidade com a DJ Badsista e com a percussionista Dominique Vieira, manas de música e de perifa paulistana, “Trava Línguas” é um álbum de reexistência, de emancipação pela arte, pelo corpo e pelo amor. A propósito, a primeira preciosidade desse trabalho vem do despacho poético e decolonial “Amor Amor”, da artista capixaba Castiel Vitorino Brasileiro.
Linn compôs com a travesti baiana Ventura Profana, ex-evangélica como ela, a transmutante “Eu matei o Júnior”, revolvendo os humores da alma: “E se trans for mar, eu rio”. Transformada, procurou desatar as amarras do mercado de escravos da fama em “Dispara”, composta com Dominique e com a cantora potiguar Luísa Guedes, que canta junto: “Nem tudo que vende / Vem de mim ou vende nós”.
Foi sair da invisibilidade e dar de cara com o jogo conflituoso de tentações entre a indústria do entretenimento, que a quer rentável, e a produção independente, que a deseja livre. Trava-língua difícil este com o qual deparou desde 2017, depois do cáustico álbum “Pajubá”, do documentário “Bixa Travesty”, do filme “Corpo Elétrico”, da série “Segunda Chamada” e do talk show “TransMissão”.
Cantar para Linn da Quebrada é um meio de produzir fissuras no sistema que aprisiona, que distancia e aparta as pessoas. “Divagar mais / Divulgar menos” é o lema de “I Míssil”, um ataque fonêmico, tirado do inglês “I miss you” (sinto sua falta), que ela arremessa contra a solidão digital, em ambiente sonoro marcado por sintetizadores, metais e batidas que se repetem com a potência de uma verruma de aço fazendo furos em si mesma.
Assim, cada música de “Trava Línguas” vai cortando com palavras e sons afiados as amarras do que silencia, para a passagem vibrante de Linn como cobra rasteira, que mata e morre de prazer, que dança em pegadas de suave balanço, que traz recordações eletrônicas sobre a pressão do espelho e que relaxa em baladas sentimentais de fingimento, despertando “a fêmea, a fome, a fama / de comida e de comédia”.
Como “filha das travas”, a cantora sente-se perdida entre algoritmos e rótulos. E recorre ao trecho do depoimento da poeta carioca Stela Patrocínio (1941 – 1992), musicado pelo pianista paulistano Lincoln Antonio, intitulado “Medrosa”. Stela, assim como o artista visual sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909 – 1989), foi considerada esquizofrênica e internada por três décadas na Colônia Juliano Moreira, onde morreu. Lá, declarou: “Eu não sei fazer justiça, não sei como faz justiça”. Linn canta essa dialética da violência.