Direito Autoral e cidadania
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 08 de Julho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Caso fosse possível resumir em uma só frase a polêmica questão dos Direitos Autorais, eu diria que todo produto e todo serviço protegido por esses direitos deveriam ser liberados para cópia e compartilhamento, exceto se utilizados para fins comerciais. Ponto. Não é simples assim porque com o advento da tecnologia digital e da transmissão de dados em redes virtuais, cresceu a importância dos conteúdos como principal matéria-prima dos negócios do conhecimento, do lazer e do entretenimento em todo o mundo. Não é a toa que as grandes corporações, sobretudo as da nova indústria cultural, passaram a jogar os usuários contra os autores, na tentativa de não pagar a quem cria e de se dar bem, em nome do lucro desmedido.
Uma das historinhas mais manjadas dessa investida é a que culpa os autores de impedir que alguém disponibilize na internet o show que gravou de sua banda preferida. Daí, o usuário fica irado com o tal do autor, numa troca de suspeitas entre impotentes e desinformados úteis, quando na realidade o que está ocorrendo é um briga entre a gravadora e a empresa que comercializa conteúdos em banda larga. Não é tão claro para as pessoas, por exemplo, que zonas de disponibilização de vídeos, como o YouTube, pertencem a empresas, que faturam bilhões com acessos aparentemente gratuitos.
Situações dessa natureza não têm como ser resolvidas de maneira justa apenas pelas forças vetoras diretamente implicadas e interessadas, que são os autores (pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica), os intermediários (aqueles que industrializam e comercializam esses produtos e serviços) e os usuários (consumidores e detentores de direitos culturais). Nesse cipoal de conteúdos de natureza sócio-econômica e cultural-educacional, é indispensável que o Estado cumpra o seu papel de fomentador e regulador das atividades que usufruem de obras autorais, com ou sem fins lucrativos. E o instrumento mais primordial para isso é uma lei de Direitos Autorais cidadã, que se sobressaia pelo respeito aos direitos individuais e que assegure ao mesmo tempo o acesso da coletividade.
Vários países estão aprimorando suas leis de Direitos Autorais, adequando-as aos novos padrões tecnológicos e de comportamento. No Brasil, o Ministério da Cultura (MinC) vem cuidando do assunto em controvertidos debates que resultaram em um anteprojeto que está submetido à Consulta Pública até o próximo dia 28 (www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral). Uma das razões principais das polêmicas geradas foi a ambiguidade com que o ministério iniciou o tratamento do tema, deixando margem para desconfiança por parte dos autores, quanto a possíveis contaminações de parte dos agentes do governo pelo componente de “liberdade” contido de forma traiçoeira no discurso do “business” de conteúdos.
Entre mortos e feridos temos aí uma proposta de alteração da Lei 9.610/98, que surpreendentemente me parece bem próxima do possível: “Na interpretação e aplicação desta Lei atender-se-á às finalidades de estimular a criação artística e a diversidade cultural e garantir a liberdade de expressão e o acesso à cultura, à educação, à informação e ao conhecimento, harmonizando-se os interesses dos titulares de direitos autorais e da sociedade” (Art. 3º). A intenção me parece boa e clara, o que ainda está pegando são alguns enunciados que parecem denunciar a presença da esperteza do dedo das multinacionais vendedoras de conteúdos e dos seus filhotes neoliberais disfarçados de vanguardistas, tipo Creative Commons.
Na parte que trata da utilização de obras, dispensando autorização e remuneração autoral (Art. 46) encontram-se muitas novidades plenamente aceitáveis, tais como a reprodução/cópia “para uso privado e não comercial” e para garantia de portabilidade “para uso privado e não comercial”; a representação e a exibição gratuita em ambientes familiares e escolares, “desde que não tenham intuito de lucro”; a adaptação para facilitar o acesso a pessoas com deficiências, “desde que não haja fim comercial”; a cópia para arquivamento, “sem finalidade comercial”; e, dentre outras, a reprodução “sem finalidade comercial” de obra cuja última edição não estiver mais disponível. Deixei a repetição das restrições entre aspas, para explicitar o quanto ser ou não comercial traz implicações à questão do Direito Autoral.
O que me deixa reticente, ao lembrar-me dos aloprados “infiltrados” no MinC, é quando nesse mesmo trecho (Art. 46) o anteprojeto coloca ao lado da dispensa de autorização ou remuneração, os usos (que concordo) para fins educacionais, didáticos, informativos e de pesquisa, algo dúbio como o “uso como recurso criativo”, sem fazer a ressalva da indicação do nome do autor e da fonte e que o produto resultante não seja comercializado. Ainda no mesmo artigo, a proposta do ministério defende (e também estou de acordo) que pequenos trechos de obras preexistentes estão liberados para releituras e remixes, mas o anteprojeto não faz qualquer resguardo com relação a direito moral ou restrição comercial. Aliás, o anteprojeto deixa muito a desejar quanto à remuneração do autor, que poderia em parte estar vinculada às mídias virgens.
Como é de se presumir, um anteprojeto de lei de Direito Autoral, deve de alguma forma considerar o autor. E a proposta do MinC apresenta alguns pontos interessantes nesse sentido. Fala, por exemplo, na mudança do conceito de “cessão” para o de “licença” nos contratos de exploração comercial de trabalhos autorais. No lugar de ceder direitos, os autores passam a utilizar a licença, caracterizada como uma “autorização dada à determinada pessoa, mediante remuneração ou não, para exercer certos direitos de explorar ou utilizar a obra intelectual, nos termos e condições fixados no contrato, sem que se caracterize transferência de titularidade de direitos” (Art. 5º XV). Entendo que isso se estende também aos serviços de compra via troca de dados na internet.
No tocante às sociedades arrecadadoras e distribuidoras de Direitos Autorais, a proposição do Estado soa favorável aos autores. A nova lei, caso aprovada, exigirá que a atividade de cobrança de Direitos Autorais, para ser lícita, deve ser registrada no Ministério da Cultura (Art. 98). E mais, que dêem publicidade e transparência ao que fazem. Na área da música, o ECAD já reagiu a essa exigência e publicou no jornal Folha de São Paulo do dia 31 de maio passado um amplo balanço, demonstrando que em 2009 distribuiu R$ 318 milhões em Direitos Autorais, beneficiando mais de 80 mil artistas, além de algumas ações de “responsabilidade social”. Em compensação, o recurso retido na rubrica “taxa de administração” é da ordem de R$ 65 milhões.
Na era dos conteúdos, nada mais natural e oportuno que uma lei capaz de tratar o Direito Autoral, observando aspectos da livre iniciativa, da defesa da concorrência, da defesa do consumidor, da inovação (quando alguém agrega sem, necessariamente, criar) e do consumo (como fenômeno sociomercadológico). Com os avanços da tecnologia digital, o Direito Autoral artístico e literário passou a fazer parte das negociações multilaterais na Organização Mundial do Comércio. Somente por produtos dos Estados Unidos, o Brasil paga por ano quase R$ 5 bilhões (cinco bilhões de reais) em Direitos Autorais. Tomara que, após criticado, o anteprojeto do MinC contribua efetivamente para levar o acesso à cultura e ao conhecimento, com distinção do que é efêmero e do que é permanente.