Caçador de si, o cronista Raimundo Cândido encontrou-se no rio que passa por sua cidade, Crateús. Como se quisesse assinar com tinta fresca uma pintura ressecada, mas acessível às cores das lembranças, ele passou a tomar a trajetória das águas como sentido e deixou-se atravessar pelas correntezas e pelo leito seco do Poti.
Foi até as cabeceiras daquele curso de água, na serra da Joaninha, em Quiterianópolis, e seguiu sua trajetória de 450 quilômetros rumo à parte mais baixa, cruzando o boqueirão da Serra Grande (Ibiapaba) para ver de perto as águas chegando ao rio Parnaíba, em Teresina. Escutou as histórias das populações ribeirinhas e sentiu que foi aceito pela vida na caatinga.
Depois de conhecer as paisagens que o rio conhece, os riachos que o abastecem nos períodos chuvosos, as grotas, as locas de pedras, as curvas do traçado das águas e seus segredos enraizados, Raimundo Cândido escreveu o livro “Da fonte à foz” (Premius, 2021), ilustrado com fotos que fez em suas andanças.
O autor percorre o território da sociedade do Poti, como o deslizar dos nativos karatiús em tábuas de mulungu. Seu incontido desejo de autoconhecimento o fez ter a coragem e a destreza das traíras, dos corós, dos mandis e de tantos outros peixes que sobem o rio em tempo de piracema.
Raimundo Cândido aprendeu a acreditar nas irmandades da natureza. Animista, conversou também com oiticicas, angicos, pereiros, juazeiros, tamarindeiros e outras tantas árvores que guardam histórias da região. Falou com sibites, canários da terra, rolinha de fogo-pagou, cancão, corrupião e socó e escutou o trilado do peitica, que os antepassados achavam agourento.
O cronista não recuou. Escreveu que “Época houve em que tive medo da vida. Um estranho acanhamento isolou-me do mundo” (p. 117). Aprendeu a respirar com o vento libertador da caatinga. Percebeu que aquilo era coisa de Sacy Pererê e convidou o duende brasileiro para dar o seu testemunho ao leitor: “Muitas vezes segurei o bote da cascavel e ele nem soube”, escreveu o danisco na orelha do livro.
As crônicas de Raimundo Cândido tratam de acontecimentos que remontam ao final do século XIX, quando o Padre Cícero, então proibido de celebrar, esteve em Crateús para ser padrinho de uma menina; ao começo do século XX, período do cangaço, com destaque para o Padre da Varzinha (que não era padre) e para o centro de poder armado que se tornaram as localidades de Varzinha, Cachoeira do Fogo, Pitombeira e Vaca Brava, em Independência.
Narram histórias dos ‘cassacos’ da estrada de ferro da Oiticica, o “Portal do Cânion do Poti” (p. 26); o sufoco do trem que deu marcha à ré da cidade de Ipueiras até Crateús para não cruzar com os ‘revoltosos’ da Coluna Prestes; a santificação da Negra Nazara, que fugiu do cativeiro e morreu pela mata; e os causos do folião Manoel Picolé, o sorveteiro e artista de circo que criou o carnaval de rua em Crateús e levou para a cidade o evento da malhação do Judas.
E, entre seus ricos personagens, tem a viúva Liberalina, cujo pingente do cordão de ouro pesava meio quilo; o Oton, afiador de facas; e o Louro da Ilha, que durante os filmes de Kung Fu dava porrada em quem se sentasse a seu lado. Tudo contado como nos versos do poeta Cimar Melo: “Os contos que te conto / São contos que presenciei / Outros contos que te conto / Quem me contou, também sei” (p.53). É ler para crer.