Celebração da fantasia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 12 de Agosto de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As fantasias são emanações mentais que retroalimentam o diálogo entre nossas experiências dos mundos interno e externo. Elas são imprescindíveis como elementos catalisadores na definição de nossas buscas e maneiras de nos conduzirmos. Às vezes é muito complexo tratar desse assunto e às vezes a questão salta sem complicações, como na leveza calviniana do livro “Meu pai é um homem-pássaro”, do escritor inglês David Almond (Martins Fontes, 2010), que conta de uma relação entre pai e filha, apoiada na dimensão mais pura da fantasia: ir além das imagens idealizadas para alcançar o outro em seu estágio onírico, longe de qualquer preconceito.
A história começa com a menininha Lizzie acordando cedo para preparar o café da manhã para o pai Jackie, que pensa que é um pássaro. Eles moram sozinhos, depois que a mãe dela morreu, mas ambos são atentamente vigiados pela tia Doreen, que vê no contato da filha com o pai uma ameaça ao desempenho educacional da sobrinha e pretende internar Jackie para libertar Lizzie da convivência com alguém que “não quer ser pessoa”. A coisa fica feia quando ela descobre que na pequena cidade onde moram, vai haver uma competição de “pássaro humano”, para quem quiser tentar atravessar o rio voando.
O comportamento de Doreen reflete os conceitos da corrente educativa baseada em metas, medições e vínculos de recompensa, espalhada nas últimas décadas pelo neoliberalismo, resultando no empobrecimento dos padrões educacionais, por produzir pontuações enganosas de alunos adestrados para fazer avaliações, quando o recurso dos testes deve ser utilizado apenas como fonte de informação no processo de aprendizagem. Assim, ela procura desautorizar a fantasia de Lizzie, perguntando, por exemplo, se a sobrinha consegue somar de cabeça “20 mais 8 mais 7 mais 3 mais 6” e se ela sabe soletrar a palavra “pneumático”.
O livro diverte e mostra com singeleza a alteridade exercida por uma criança que não se abala diante das excentricidades do pai. Com sua sabedoria infantil, decide se comunicar com ele, utilizando-se da linguagem a que ele tem acesso, a fantasia. O mais curioso e mais inusitado nessa história é o quadro de inversão que se desenha por todo o enredo. Ao invés de ser o pai a racionalmente se esforçar para compreender os sonhos da filha é a filha quem, na grandeza da sua credulidade, responde às manifestações do pai no mesmo irrealismo por meio do qual ele se expressa.
Enquanto a tia Doreen procura interferir na situação pelo viés das formalidades sociais, discriminando Jackie como louco ou caduco, Lizzie recorre espontaneamente à brincadeira, vestindo-se também de pássaro e fazendo junto com o pai um confortável ninho dentro de casa, como ponto de cumplicidade. A preciosa experiência de comunicação entre o homem e a menina pássaro vai repercutir na realidade, destravando fantasias bloqueadas, tanto no diretor da escola, o senhor Mint, quanto na tia Doreen, que se descobre na fantasia até então encoberta por sua racionalidade cotidiana.
A fantasia de Lizzie certamente não se encaixa no fluxo fantasioso das produções involuntárias do sonho noturno, desfragmentador da mente, nem dos caprichos da imaginação, comum ao sonho acordado e suas idealizações ocultas, que buscam a realização do desejo no inconsciente. É uma fantasia iluminada e protegida pela candura, como se as atividades especiais do pensamento recorressem ao estado de ingenuidade para se expandirem livremente, criando uma valiosa condição de comunicação, originada na força do impulso afetivo de cuidar do pai.
Lizzie transforma a imaginação em ato, ao deslocar o real para o campo da fantasia. Assim, ela atrai natural e consequentemente o senhor Mint e a tia Doreen para o devaneio, sem cair na mera alegoria. Neste sentido, o livro oferece boas revelações literárias a respeito da fantasia, ao projetar a imaginação da filha em direção ao homem-pássaro, simplesmente para ser fantasia também, para acontecer sem precisar existir, para criar condições de comunicação no espaço de interioridade do pai e da filha.
Quando eu estava lendo esse livro para os meus filhos, eles fluíam capítulo por capítulo na frequência de Lizzie e Jackie. Pediam sempre para que eu lesse mais um pouco até adormecerem. Noites e páginas se passaram e, finalmente, aproximamo-nos do final. Era o momento da competição de “pássaros humanos”. Pessoas de muitos lugares estavam inscritas, com suas engenhocas para voar. Tinha a Mulher-libélula, o Homem-helicóptero, o Menino-abelha, o Eddie Elástico, o Danny Dardo, Winnie, a Cata-vento, a Bess Balanço, Sid, o Planador e, claro, Jackie e Lizzie Corvo, com asas de penas verdadeiras… Crá, crá, crá!
Certa noite eu quis parar de ler a história no meio da competição e foi uma grita geral no quarto dos meninos, nosso ninho de leituras. Não víamos a hora do homem e da menina pássaro cruzarem o rio voando. Meus filhos tinham vibrado quando descobriram que o diretor Mint resolvera participar, com fogos de artifício amarrados nas costas. Li um pouco mais, porém a grande final ficou para a noite seguinte. Antes mesmo de concluir, a decepção deles foi geral: Jackie e Lizzie caíram na água, foram arrastados pela correnteza e socorridos por salva-vidas. Mesmo assim, segui lendo o restinho que faltava. De repente, percebi que eles fitavam um ponto perdido no teto do quarto, onde suponho podiam ver a fantasia interferindo no real, através da dança da tia Doreen, perguntando a Mint, Jackie e Lizzie se suas pernas estavam no ar.
Houve certo clima de alívio e nada mais. No dia seguinte, antes de começarmos a leitura de um novo livro, abrimos uma conversa sobre o Homem-pássaro e sua filha Lizzie. A troca de impressões e ideias durou mais do que se possa imaginar. Felizmente eles não precisaram abrir mão do sentimento de que a história seria mais empolgante se tivesse terminado com a travessia dos “pássaros” ou, pelo menos, com a vitória do diretor Mint, para chegar a conclusão de que o cumprimento dessa expectativa teria sido muito pouco para uma fantasia.
Coloquei que a fantasia em “Meu pai é um Homem-Pássaro” não se concretiza porque na verdade as fantasias não têm a função de se concretizar. A função da fantasia é mover o real. Nessa história, ela foi fundamental para a filha salvar o pai de ser internado; foi a forma que a menina encontrou de dizer que ele deveria ser aceito pela tia Doreen. A fantasia de Lizzie serviu para ela comunicar essa vontade, por isso eles voaram juntos. Outro alcance da fantasia nessa história é o desbloqueio que ela proporciona ao diretor da escola e à tia Doreen, a partir do momento que eles se permitem conviver com alguém que pia, grasna, come insetos e minhocas. Jackie deixou de ser um estranho logo que a sua “anormalidade” foi encarada como “normal”.
Naquela noite não houve leitura, foi só conversa. Quer dizer, houve leitura, sim, o livro seguiu sendo lido fora das páginas, nós no quarto e ele na estante da sala, aparentemente distante. A fantasia de Jackie e Lizzie seguiu interferindo em nós, levando-nos a mexer com as nossas fontes internas e externas de fantasia. O livro de David Almond tem a capacidade literária de desprender o leitor para dentro e para fora de si, por meio de uma delicada fantasia. Nessa história de convergência de contrários, a fantasia serviu para que os personagens ficassem juntos; enquanto que, fora do livro, a fantasia serviu para que falássemos do quanto a compreensão do outro nos aproxima.