Acordei com uma música na cabeça; uma música que diz assim: “Alguma vez você já viu Nova Iorque / por trás das prateleiras de um bar / alguma vez você já sentiu / famílias inteiras lhe roendo as orelhas sem cessar? // Dizem que na Lua / São Jorge é fazendeiro / um grande latifundiário / toda noite toma seu chá / e faz poemas à Terra / ao lado do seu dragão fox-terrier”.
Pelo que eu saiba, essa música, composta pelo poeta bukowskiano Assis Silvino e pelo violista performático Marcos Cusca, nunca foi gravada; fazia parte das nossas sátiras de estudantes universitários. Pode ser que, depois de tanto tempo, ela tenha chegado assim, sem mais nem menos, à minha lembrança, mas fiz questão de prestar atenção à sua mensagem.
Que metaverso seria esse que permitiu a passagem de uma criação literomusical por fora do ambiente digital compartilhado e seus dispositivos? A existência parece que ainda tem respiros em circulação transversal ao mundo paralelo do ilogismo. Sim, “Nova Iorque / por trás das prateleiras de um bar”; o centro do futuro do passado e suas vidraças estilhaçadas.
O thriller projetado por essa composição está nas ruas do Brasil, mordendo perspectivas de civilidade. Você “já sentiu famílias inteiras lhe roendo as orelhas sem cessar?”. Não precisa ver a série “Round 6” (Netflix) para saber o que acontece com a sobrevivência quando a vida não passa de um jogo de competitividade.
O processo de ‘limpeza’ da parte da população brasileira que já não consegue ser consumidora e que vai deixando de ser útil aos acumuladores de riqueza e de poder está em curso no país com a mesma desenvoltura dos disparos de boatos eletrônicos nas mídias de relações sociais em rede. No mundo social físico, o ‘serviço’ vai do descaso covidiano ao desmonte das políticas de proteção social.
Do alto da concentração econômica, a destruição do planeta parece ser vista com ares inspiradores da órbita da realidade vivida e sua transferência do amor ao próximo para a fofura dos pets. “Dizem que na Lua / São Jorge é fazendeiro / um grande latifundiário / toda noite toma seu chá / e faz poemas à Terra / ao lado do seu dragão fox-terrier”.
O discurso dessa música pop-projetiva do Silvino e do Cusca levou-me a refletir sobre a semântica do tempo social e o quanto a relação da sociedade com a política segue a mesma, enquanto o mundo mudou. Sabe-se lá o que é viver em um país com a sensação de que entre os aliados do presidente estão contrabandistas, milicianos, garimpeiros e madeireiros ilegais, mercadores da fé e financiadores da indústria da morte disfarçada de saúde e segurança.
A conjugação do aumento das condições de sobrevivência da maioria da população com o receio das demais de terem as orelhas roídas é diretamente proporcional ao crescimento das expectativas com relação ao soberano salvador, ao Estado dadivoso ou às inovações do mercado da diversidade. Cabe repetir os versos da canção: “Alguma vez você já viu Nova Iorque / por trás das prateleiras de um bar?”.
No regime de universo virtual paralelo, a palavra tende a perder-se da realidade e até os assuntos concretos de Estado vão virando bolhas políticas de governo. É o caso do programa Bolsa-Escola, que virou Bolsa-Família e mais de duas décadas depois está virando uma bagunça, no tempo em que uns roem as orelhas dos que fingem não sentir e, por sua vez, postam nas redes digitais as gracinhas dos seus ‘dragões’ com ar de felicidade.