O fantasma colombiano
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Agosto de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Álvaro Uribe passou oito anos (2002 – 2010) como chefe do executivo colombiano. Quis inventar um terceiro mandato, mas sua pretensão foi inviabilizada pela Corte Constitucional do país. Contudo, dois mandatos foram suficientes para ele virar um misto de venerado e vilão em uma sociedade culturalmente rica e com destacável potencial econômico, mas intensamente prejudicada pela competição internacional dos mercados de armas e drogas. Por um lado, Uribe alcançou 75% de aceitação e, por outro, há a expectativa de que ele seja julgado internacionalmente pelos atos desumanos que cometeu contra a população civil.
Construiu popularidade em cima dos números de baixas que causou às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e de um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que chegou perto dos 5% ao ano em seu governo. Tornou-se rejeitado por personificar o terror, como patrocinador de grupos paramilitares que, em sua gestão foram favorecidos com prêmios por extermínios de milhares de trabalhadores rurais e moradores de favelas, contabilizados como guerrilheiros, e pela elevada concentração da riqueza em um país cuja metade da população ainda vive abaixo da linha da pobreza.
Embora tenha elegido o seu sucessor, Álvaro Uribe estaria inconformado com a intenção do atual presidente Juan Manuel Santos de querer “arranjar” para ele algo como uma embaixada lá pela Ásia, bem longe de Bogotá. Contrariedades como essa teriam levado Uribe a criar, dias antes de passar a faixa presidencial, uma situação de desentendimento com a vizinha Venezuela de Hugo Chávez. Felizmente, Santos se reuniu com Chávez (10/8) e contornou a vexatória investida do seu antecessor.
Passados cinco dias da posse do presidente Santos (7/8), um carro-bomba explode em Bogotá, bem em frente à Rede Caracol, a maior cadeia de rádio e televisão colombiana. Os apoiadores de Álvaro Uribe espalharam imediatamente o argumento de que o ataque seria um “recado” das Farc ao novo chefe do poder executivo. Com o passar do impacto, analistas começaram a questionar a razão de um acometimento desses diante das circunstâncias atuais. Até que timidamente começaram a surgir conjecturas de que o mentor da explosão do carro-bomba pode ter sido o ex-presidente.
O raciocínio que sustenta essa interpretação baseia-se na provável intenção de Uribe de jogar areia nas engrenagens de aproximação que seu sucessor vem ensaiando com Caracas, em nome da saúde da economia dos dois países. Até 2008, a Venezuela era o segundo maior parceiro comercial da Colômbia, mas a política uribista preferiu abrir mão dessa relação econômica para ficar inteiramente na dependência dos Estados Unidos. Como o atual presidente estaria disposto a restabelecer os vínculos de negócios com o vizinho o “homem sem alma”, como Álvaro Uribe é também conhecido, resolvera infernizar a vida de Santos e Chávez valendo-se do velho recurso do carro-bomba.
No final da década de 1980 e início dos anos 1990 esse tipo de atentado era comum na Colômbia, época que o país sofria com as incursões violentas do narcotraficante Pablo Escobar, de quem Álvaro Uribe teria sido amigo íntimo, quando, conta-se a boca miúda, integrou o cartel de Medellín. Do jeito que tenha acontecido, para se consolidar no poder Uribe foi acusado de repetir as ardilezas que levaram Richard Nixon a renunciar à Casa Branca no caso Watergate, inclusive grampeando telefones de dissidentes, opositores, jornalistas e magistrados da Corte Suprema de Justiça.
A possibilidade de ter sido Álvaro Uribe o mandante, abriu espaço para uma série de explicitações desse personagem tão enigmático publicamente, mas que, observado de perto, não parece tão diferente de outros vultos polêmicos do nosso continente, tal como o ex-presidente panamenho Manuel Noriega. Faço a comparação porque as semelhanças são reveladoras. Noriega trabalhou como agente dos Estados Unidos, quando George Bush, o pai, foi diretor da agência de espionagem (CIA) daquele país. No mês passado, ele, que estava preso nos EUA, foi condenado pela justiça francesa por fazer lavagem de dinheiro para o cartel de Medellín, ao conseguir, quando era presidente, trânsito pelo Panamá de aviões carregados de cocaína.
A relação mais estreita de Álvaro Uribe foi com o governo militarista de George Bush, o filho. Quando, em 2009, viu frustrada a sua pretensão de realizar o plebiscito que o conduziria a mais um mandato, ele, a exemplo do que aconteceu no Panamá de Noriega, franqueou aos estadunidenses acesso militar em seu território, concedendo, inclusive, o direito a porte de armas e a livre circulação, dispensada de qualquer inspeção. Com a saída de Uribe do governo, a Corte Constitucional determinou que esse pacto militar fosse considerado sem validade até ser examinado pelo poder legislativo.
O presidente Santos foi ministro de Comércio Exterior e da Defesa do governo anterior e conta com ampla maioria no Congresso. Enviar ou não os termos do acordo para análise e posicionamento parlamentar vai depender da compreensão que ele tem de compartilhamento de poder. Afinal, o que está em negociação, mais do que os interesses internos (na gestão Uribe a Colômbia recebeu dos Estados cerca de cinco bilhões de dólares em “benefícios”) é uma questão geopolítica de controle da América do Sul, uma queda de braços entre a cambaleante Organização dos Estados Americanos (OEA) e embrionária União das Nações Sul-Americanas (Unasul).
Embora camaleônica, a imagem que se tem de Juan Manuel Santos é que ele é um político pragmático e que tem vontade de se destacar com lanterna própria na escuridão dos conflitos do mundo multipolar em construção. Ele vem de uma tradicional família política, que é também proprietária do grupo Planeta, controlador do “El Tiempo”, maior jornal da Colômbia. Em 2002 apoiou o golpe promovido pelos EUA contra o presidente Hugo Chávez, na Venezuela e, em 2008, comandou a operação militar que invadiu o Equador para matar um dos líderes das Farc, por cuja cabeça o Departamento de Estado norte-americano oferecia cinco milhões de dólares, causando mal-estar diplomático com o presidente Rafael Correa.
Santos tem declarado à imprensa que pretende “virar a página do ódio” na Colômbia. Tenta descolar-se de Uribe, mas o espectro do Estado que mantém grupos ilegais aterrorizando juízes, participantes de entidades da sociedade civil e defensores dos direitos humanos, ainda ronda o país no fantasma de Álvaro Uribe. Este é um problema que não sai facilmente da cabeça das pessoas. A situação é tão confusa e o passado do ex-presidente tão aflitivo que, ao deixar o Palácio de Nariño, a residência presidencial, passou a morar num quartel de alta segurança, aproveitando os benefícios de um decreto que ele mesmo criou antes de deixar a presidência.
O que Juan Manuel Santos será só vai dar para saber no futuro. Sempre há uma esperança de que as coisas mudem, de que as pessoas evoluam para melhor ou se revelem melhor do que se espera delas. O ideal seria que, com o avanço democrático que ensejou a saída de Uribe, a Colômbia iniciasse um ciclo de transição do militarismo e do narcotráfico para a valorização da sua economia limpa e de uma política capaz de expandir as relações colombianas além dos interesses dos Estados Unidos. É o mínimo que os nossos irmãos colombianos merecem. Resta saber o quanto o fantasma de Álvaro Uribe ainda se manterá atraente ou tenebroso na memória coletiva dessa gente.