O imaginário social e cultural de Fortaleza ganha um novo reforço em seu repertório de sensações com o coco de embolada que Chico César acaba de compor em homenagem a Mané Bofão, o Rei da Panelada, seu conterrâneo, de Catolé do Rocha. Manuel Damião do Nascimento (1920 – 2004) deixou a Paraíba em 1947 para trabalhar como estivador no então recém-inaugurado Porto do Mucuripe. No início da década de 1960 abriu um bar, com base em cachaça boa e na tradicional culinária nordestina de vísceras, e reinou por três décadas na atividade.
O bem bolado coco de embolada, composto por Chico César, diz assim: “Mané Bofão foi de Catolé para Fortaleza / Tinha certeza que ia dar pé / E ali na Baturité montou seu boteco / Para vender panelada para homem e pra mulher / Fez tanto sucesso o seu bofe / Que até Magda Cotrofe / Comeu a panelada do Mané / Mas não manera, Mané / Com essa panelada / Quanto mais come buchada / Mais ainda o povo quer / Depois a sobremesa é uma cocada / Com um coco de embolada / Que veio lá de Catolé”.
Com esse canto jackson-do-pandeiriano, a figura de Mané Bofão avança em ritmo presente na dinâmica da cidade, por sua ancoragem prosaica e poética de cunho etnográfico urbano. É a música operando, não como volta nostálgica ao passado, mas como camada de significação, como o estalo de vínculos, conceituado no meu livro Bulbrax (Armazém da Cultura), que constitui o caráter da cidade a partir dos seus lugares de experiência e representação.
Essa aproximação da cidade real com a cidade representada, tendo a figura do Mané Bofão entre suas ligas, está bem entrelaçada em “Fortaleza no tempo do bumba”; samba de mesa de Carlinhos Palhano, piauiense, de Teresina, adotado por Fortaleza: “Volto ao presente e me pego a caminhar / Por trás da Sé, subindo a rua Rufino de Alencar / Mas de repente veio a recordação / que ali perto tinha o Mané Bofão / A panelada de primeira, que causava sensação”.
O entrecruzamento de vozes copresentes na capital cearense é um dos atributos de uma cidade que gosta de acolher os chegados de perto e de longe. É o caso da parceria entre o cantor pereirense Falcão e o jornalista fortalezense Tarcísio Matos em “A cura da homeopatia pelo processo macrobiótico”, uma fuleiragem-music que fala de alguém que virou outra pessoa depois de receber a influência gastronômica do Mané Bofão: “Passei a comer seguindo a sua orientação / Panelada, buchada / Sarrabulho, tripa de porco / Fuçura, linguiça, rabada, miúdo / Bife, passarinha, mocotó, carne de lata / Chouriço, tutano, sarapatel / Mão de vaca”.
Mané Bofão morreu de diabetes e foi sepultado no Cemitério São João Batista. Em nota sobre a sua despedida, o memorialista Nirez escreveu que ele “ganhou fama na Capital cearense (…) e conquistou admiradores com sua gastronomia entre os anos 1960 e 1990”. No livro “Revelações de um repórter”, Nelson Faheina complementa: “A coisa pegou e ele adquiriu uma freguesia formada de vendedores ambulantes, carreteiros, motoristas de táxi, jornalistas, radialistas, médicos, políticos e o pessoal das companhias aéreas”.
Mais do que servir uma panelada que não ensebava, o diferenciado chef catoleense tinha o carisma dos brabos que se tornam amados pela autenticidade. A música dignifica e ressignifica pessoas e lugares, e Mané Bofão já virou até coco de feira na roda dos personagens notáveis de Fortaleza. “Não manera, Mané”!!!