A data de 30 de janeiro de 1942 é especial para a cultura cearense. Foi nesse dia que as pessoas vaiaram o sol em plena Praça do Ferreira, em Fortaleza. Passados 80 anos, esse acontecimento segue em sedimentação simbólica no nosso mundo social tão encorpado de tragicidade e, ao mesmo tempo, tão livre em seu espírito cômico.
Eram muitas as tensões que agitavam aquele ano: o inverno de 1941 tinha sido de chuvas ralas, e anunciava-se uma seca braba em 1942, o que levaria aos planos de emergência e reativação dos campos de concentração de flagelados, como fora feito na década anterior. Na capital, crescia o temor da possibilidade de saques praticados por retirantes e da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).
O desânimo perdeu força naquela sexta-feira, 30 janeiro, quando o dia amanheceu nublado em Fortaleza e muitas pessoas correram para a praça principal da cidade a fim de receber a esperada chuva. De repente, as nuvens foram se deslocando e o sol apareceu brilhando no céu, levando uma vaia geral.
– Ieeeeei!
Desde então, essa vaia de curva sonora peculiar, que começa aguda na letra “i”, lampeja gasguita em um fio de letra “e”, partindo como um raio pela letra “i”, afirmou-se como patrimônio da cearensidade. Não é uma vaia qualquer, dessas que se limitam a Uuuu! ou Fiu fiu!; a vaia do Ceará é uma unidade linguística autônoma e destoante, praticada por uma gente exclamativa.
Esse vaiar não é necessariamente um ataque direto contra nada nem ninguém. Não busca ridicularizar, não tem caráter moral, nem é precedido de pensamentos. A vaia irrompe dentro de certas circunstâncias como reação introspectiva que se liberta. Por isso é uma manifestação breve, imediata, como um reflexo de insurgência pela intensificação da vida.
Uma vez que se constitui como fenômeno social coletivo transgressor dos códigos comportamentais previsíveis, a vaia cearense é sempre pública. Só assim ela tem graça, enquanto performance vocal faiscante, de competência metacultural. Quem vaia fala de si mesmo diante do espanto com a própria generalidade, em um soar contraditório comum aos atos de purgação.
Por ser expressão de espontaneidade atávica, essa vaia não tem dono; muito menos princípio de hierarquia ou geração querendo se apropriar do seu brilho. A vaia praticada pelo cearense dispensa regências e departamentos de cultura para burocratizá-la. Seu grande valor é a liberdade de clarear o que realiza desejos e o que abafa vontades.
A vaia ao sol na Praça do Ferreira foi entoada pela força de uma frustração, em um momento de impotência e indignação. O mesmo sol poderá vir a receber outra vaia, desta vez em forma de grito de louvação à energia solar, no dia em que se anunciar em praça pública que o hidrogênio verde chegou para assegurar a redenção econômica e social do Ceará.
– Ieeeeei!
O alcance da vaia cearense pode ser medido em anos-luz, mas também no olho no olho. Essa vaia surge da impaciência, do desejo de comemorar, da coragem de acreditar, da realização de algo e por mera gaiatice. Tanto pode exprimir um Bravo! e um Viva! como um Paft! e um Fora!
A transmissão da vaia se dá a partir de um dínamo que retroalimenta a interação entre o comportamento individual e o coletivo: emoção e estética trocam carga de estridência luminosa no entrecruzamento da indignação com a espirituosidade ao sabor das circunstâncias. Ieeeeei!