Entender o que está se passando no momento em que os fatos acontecem e em um tempo conturbado como o que atravessamos é uma tarefa bem difícil. Entretanto, sentir os movimentos desse tempo, observando situações assemelhadas do passado renovável e evidências do presente ampliado, pode ser um bom exercício de localização comportamental, necessário à condução da vida natural e social.
Ao fazer esse esforço de reflexão, procuro partir da compreensão de que na cultura, como na natureza, a decomposição sistêmica é sinal de que algo novo está se preparando para nascer. É assim com as sementes quando estão prontas para brotar, e tem sido assim com as sociedades humanas nas circunstâncias de saltos civilizatórios.
Pelo menos três fenômenos parecem ter grande influência nesse processo de decomposição: 1) a desnoção do sentido social presente no capitalismo rentista, 2) a política do ‘cadê o meu’, promotora da segregação, pelo fortalecimento de adeptos, que debilita a construção de novos arranjos para a construção pública dos direitos das diferenças e 3) a distorção da ideia de democracia e de sucesso, baseada em maioria numérica.
No livro “Sociedade incivil” (Vozes, 2021), o jornalista e sociólogo baiano Muniz Sodré analisa fenômenos de ordem sociopolítica pelo ponto de vista da comunicação na ‘democracia eletrônica’. Constata que o advento da interatividade das redes sociais digitais, em vez de romper com o monopólio da fala da comunicação tradicional, acabou por criar simulações participativas guiadas por algoritmos, voltados para a valoração da busca por atenção e desvalorização do diálogo.
Sodré chama o automatismo linguístico predominante de ‘livre-psitacismo’, que é a mania de repetir palavras sem qualquer responsabilidade para com o que elas representam, como fazem os papagaios. “A fala pode ser tecnicamente ‘liberada’, mas não existencialmente livre, porque não tem vinculação intrínseca com a liberdade do outro” (p. 19). Isso causou uma hecatombe etimológica, que virou pelo avesso o significado de termos como verdade, honestidade, família, ética, sustentabilidade e liberdade.
Desse desarranjo hipermoderno, que Muniz Sodré vê como “uma reconfiguração antropológica da vida humana” (p. 13), nascerão as sociedades que formarão o que chamo de Era da Substancialidade; um tempo que resultará dos conflitos de escassez, da redefinição do senso econômico no pensamento social, do estabelecimento de tabus contra a ostentação, o racismo e o sexismo, assim como do restabelecimento da palavra como instrumento do poder decisório.
Desde 2009, quando propus o conceito de Cidadania Orgânica para o tratamento da evolução de uma onda mundial de ação individual orientada pela consideração ao todo, que observo o cabo de guerra das movimentações humanas entre os que seguem empenhados no aprofundamento da podridão nas relações sociais e na devastação dos recursos naturais e os que se movem na perspectiva de um viver diverso e integral na dinâmica planetária.
Mais do que maledicências, a realidade pede ação. Percebo três campos comportamentais como definidores da equação do que virá: 1) a reaproximação (ou não) da cultura com a natureza, 2) a reconstituição (ou não) dos vínculos comunitários pela combinação dos mundos sociais físico e virtual, e 3) a retomada (ou não) da atitude cooperativa, vitoriosa chave da sobrevivência ancestral para propósitos comuns.