Juventude é sinônimo de inspiração, mas em muitas circunstâncias o que é energia criativa e potência cidadã entra em processo de desinência social, cultural e política, levando jovens a estados de desalento, indiferença e derrota. A evidência desses sintomas atesta o fato de que não está fácil adolescer em um mundo marcado por uma profunda crise de significados.
Toda sociedade precisa da sua juventude para se reinventar. E um dos passos importantes que podem ser dados nesse sentido é o estímulo ao modo de ver como inspiração. Mas ver o quê? O que pode estar fora do alcance e da manipulação dos algoritmos do entretenimento digital? Esse é um desafio bom a ser colocado para quem tem os atributos da inquietação e só precisa transformá-los em convicção.
O poeta espanhol Antonio Machado (1875 – 1939) diz em seu célebre poema “Cantares” que os caminhos são feitos por quem anda. E a juventude não pode ficar parada ao sabor das recompensas virtuais, seja como influenciadora ou seguidora. Como viver esse tempo aproveitando os avanços tecnológicos das redes sociais sem, no entanto, ficar subordinado a elas?
Ao ler os textos finalistas do XIII Prêmio Literário Flávio Paiva 2021, realizado pelo Espaço Cultural História Viva, no município de Independência, onde eu nasci, fiquei com a impressão de que as estudantes e os estudantes de 13 a 17 anos que, mesmo diante das dificuldades de uma pandemia, se mexeram para participar e falar sobre o tema “Histórias e causos do meu lugar”, estão abrindo novas trilhas ao caminhar.
O exercício da produção literária revolve inspirações e devolve o acesso a sonhos e desejos próprios da juventude pelos canais físicos e virtuais da apropriação. O que me deixa mais empolgado com tudo isso é ver escolas e famílias lado a lado nessa caminhada. A apresentação musical das alunas e dos alunos da EP Maria Altair, com seu repertório descolado dos modismos de massa, reforça o algo mais em um processo educativo que abre espaço para o jeito de ser pelo modo de ver.
Maria Francilene, aluna da EEIF José Ferreira dos Santos, conta a história de quatro irmãos que viviam cordialmente e tiveram suas vidas tragicamente mudadas por um conflito amoroso de ordem socioeconômica. Expedito Anderson, da EEMTI Jerônimo Alves, trata do distanciamento crescente da nova geração que já não tem orgulho de ser brincante no reisado. Ana Daiane, que estuda na EEEP Maria Altair, ressalta o sentimento de liberdade que deu origem ao nome Independência.
O apelido da cidade, Porronca (que significa ‘lugar de briga’, ‘onde o pau ronca’), também aparece no cordel de Antônio Cleyton, da EEEP Maria Altair, mas abordando aspectos voltados para a construção de açudes e a festa da padroeira. Já Marciliano de Souza, da EEIF Manoel Ferreira de Melo, discorre sobre o cotidiano da fazenda onde nasceu e onde pretende seguir vivendo. E tem até redemoinho agitado de Saci passando pela cidade na crônica de Diógenes Arthur, da EEF Abigail Marques.
O aproveitamento cultural e educacional dado a estruturas que perderam a serventia ao longo dos anos, como as estações de trem, aparece nos versos de Ana Lívia, do Colégio Coração de Maria. Não falta entre os escritos premiados o traço bem-humorado, como o acontecimento narrado por João Pedro, do Colégio Santana, no qual um júri pressionado a fazer os gostos da sobrinha de um líder político, em um concurso de beleza, acaba por eleger a candidata mais feia e, mesmo assim, ainda erra na escolha.
Maria Clara, do Colégio Santana, leva em seus versos a mania das pessoas, sobretudo as que moram longe, de esperar o ano inteiro para se fazerem presentes nas festas de Nossa Senhora Sant’Ana. José Cainan, aluno da EEIF Maria do Carmo Cardoso, vai à década de 1960, época em que a luz de motor se apagava às 22:00, para contar das paqueras das moças com os soldados do batalhão nas festas de chitão e durante a exibição de filmes no telão que era colocado em frente à estação de trem, onde hoje funciona a sede do Espaço Cultural História Viva.
Esses escritos, selecionados por uma equipe de professores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) formada por Efigênia Alves (Jaguaribe), Eugênia Tavares (Fortaleza), José Enildo (Ubajara) e Lourival Soares (Baturité), não são apenas textos de jovens estudantes produzidos na precariedade de um tempo de pandemia; eles nos remetem à abertura de trilhas “verso a verso”, como diz a obra de Antonio Machado: “Faz algum tempo neste lugar / onde hoje as matas se vestem de espinhos / se ouviu a voz de um poeta gritar: / Caminhante não há caminho, / se faz caminho ao andar”. E o caminho está sendo aberto à base de histórias e causos como inspiração.
Por todos os treze anos consecutivos de realização desse prêmio, há uma predominância de trabalhos em literatura rimada. Isso me faz lembrar do meu tio-avô Saladino (1909-1977), que dá título a um dos capítulos do meu livro Bulbrax (Armazém da Cultura). Ele andava pelos povoados e fazendas de Independência ‘desarnando’ crianças com folhetos de cordel. Nunca foi reconhecido por esse trabalho de educador ambulante, e acabou descartado, catando objetos quebrados pelos monturos para consertá-los e sendo taxado de louco.
A dificuldade de valorização de quem educa ainda é um dos graves problemas brasileiros. Atenta a essa lacuna, a equipe do Espaço Cultural História Viva tem dado ênfase a pessoas que ‘fazem o caminho’ da educação na hora de escolher os nomes com destacada atuação no município para serem homenageados durante a solenidade de entrega do prêmio. Assim, o troféu Saci de Personalidade do Ano foi entregue à professora Mazé Costa. Ela agradeceu, realçando que, por todas as décadas em que se dedicou à profissão, sempre procurou contribuir para que seus alunos se preparassem bem para a vida. Chorou ao revelar que aquele era o seu primeiro reconhecimento público. E quem estava atento à sua emoção chorou também.
Fonte: Rivista do Mino 236