Desde que foi lançada a série “Bolívar, uma luta admirável” (Netflix, 2019) que fiquei com vontade de assisti-la. Tentei umas duas vezes, mas não gostei dos primeiros capítulos, demasiadamente alegóricos no contar da infância do Libertador, embora necessários para a compreensão das origens do personagem de maior importância política e histórica do continente latino-americano.
Entretanto, a miniatura de capa da série ficou aparecendo na tela e acabei encarando uma maratona de 60 episódios de quase uma hora cada um. Foi compensador, em que pese a produção colombiana ter optado por uma abordagem romântica, na qual Simón Bolívar (1783 – 1830) aparece antes de tudo como um galanteador.
De todo modo, essa perspectiva do roteiro abriu espaço para a atuação objetiva de duas mulheres que tiveram muita importância no despertar de Bolívar como o mais extraordinário dos líderes do movimento emancipacionista hispano-americano: sua primeira paixão, a espanhola Maria Teresa, e a última, a equatoriana Manuelita Sáenz.
Bolívar nasceu em uma das famílias mais ricas da Venezuela; proprietária de terras, de escravos e com grande influência na burocracia real instalada na colônia. A série mostra a relação amorosa que desde a infância ele tinha com escravizados e com um professor simpatizante da educação pública; sua formação intelectual e militar europeia; e suas lutas pela libertação, até a morte por tuberculose, aos 47 anos.
Em um percurso histórico de apenas 20 anos de luta política e militar, pelas planícies alagadas e pelo frio da cordilheira andina, Bolívar libertou a Grande Colômbia (que incluía o Panamá e o Equador) e o Peru, e, na região do Alto Peru, criou a Bolívia. A série destaca ainda a relação do Libertador com outras figuras também relevantes, como San Martín (Argentina e Chile) e Sucre (Equador).
Simón Bolívar queria uma confederação de Estados nacionais que, unidos, pudessem dar voz à América Latina na geopolítica global decorrente das grandes navegações. Com o discurso da liberdade, conseguiu montar e comandar vitoriosamente exércitos de descamisados, de soldados em condições precárias e voluntários crioulos (descendentes de espanhóis nascidos na América).
A chama e o drama da liberdade envolveram latifundiários, burocratas, juristas, clérigos e intelectuais, que viram na afirmação da independência uma oportunidade de sair da condição de títeres do reino espanhol para assumirem as benesses do poder, ficando livres para vilipendiar quem não fosse um ‘senhor’, como mandava o sistema de pensamento e o modo de ser do dominador.
A mentalidade dos conquistadores estava ancorada na distinção do “senhor” como definição de classe mandante; e essa compreensão permaneceu no poder após o processo de emancipação. Bolívar conseguiu o grande feito de expulsar os espanhóis, mas morreu desolado com tantas traições das elites crioulas na hora de instalar as instituições republicanas.
A concentração de riqueza, o localismo e a inexperiência das lideranças diante do assédio dos agentes estrangeiros tornaram-se as bases sociais latino-americanas. A troca de “senhores” não se configurou em troca de realidade para nativos, negros, mestiços, mulheres, crianças, sem-terra, sem-teto, sem-escola e, portanto, sem liberdade. Tudo isso pode ser observado na série Bolívar, em uma mistura de entretenimento e de história necessária.