Faz tempo que a atriz gaúcha Nora Prado publicou o livro “A espessura da vida” (Farol3), com poesia feita de movimentos imperecíveis e de vida densa, ancorada no viver, no amor, na memória e em outros temas comuns a uma guria que aprendeu a sentir os ritmos do mundo, seus volumes e densidade pelo sonar da existência.
Como só agora tive a oportunidade de ler essa obra de Nora, fiquei com vontade de compartilhar um pouco do que mais me tocou na sua poética sublinhada por camadas de imagens e momentos expressivos de um jeito solto de ser, ora pelas esquinas do varal urbano, ora como uma flor do mato em ondulações ao sabor dos ventos.
Conheço a autora desde muitos anos, e também o seu companheiro Gabriel Guimard (com quem divide a Cia. Megamini), a filha Valentina e o filho Aramis. Para mim foi uma surpresa descobrir em seus versos que ela é filha do artista visual, táctil e sensorial Vasco Prado (1914 – 1998), criador do troféu que um dia recebi na Jornada Literária de Passo Fundo.
Mundo pequeno este, mas ao mesmo tempo bem espesso na dinâmica e na intensidade da vida. Nora Prado é uma artista integral. No teatro, atuou com Gerald Thomas e escreveu o monólogo “A Modelo”, peça dirigida por Angela Santangelo, no qual uma moça que posa nua para artistas plásticos narra fatos marcantes de sua vida.
No cinema e na televisão, fez o papel principal nos filmes “O Zeppelin passou por aqui” e “Festa de casamento”, ambos do diretor Sérgio Silva, participou de “Sonho sem fim”, de Lauro Escorel, “Boleiros”, de Ugo Giorgetti, e da telenovela Éramos Seis, do SBT. E toda semana publica uma crônica no blog Esquina Democrática, repostada em suas redes sociais.
Em “A espessura da vida”, que tem ilustrações em bico de pena da mãe Zoravia Bettiol, artista plástica e arte-educadora, Nora divaga pelas ruas de Porto Alegre, sentindo-se reconhecida pelas casas em cujas calçadas passeou na infância, pelas cores depois da chuva e pela morada que viu ser construída e que um dia ficou sozinha quando todo mundo foi embora.
As lembranças de Uruguaiana, terra do pai, terra mestiça, de mata quente, das lendas gaúchas e da amizade imaginária com o Negrinho do Pastoreio, revelam-se em palavras que refrescam por dentro as lembranças da menina que gostava de comer cabeça de palito de fósforo queimado e de ler nos olhos do pai as emoções que ele sentia quando fazia suas leituras sentado em uma elegante cadeira de balanço.
Os poemas de Nora falam da vida no campo, de bichos, plantas, cachoeiras, uma vida com cheiro de água de rosas, mas também de fome de sentido, de meias puídas que precisaram ser remendadas e do anseio juvenil de querer quase tudo e quase nada. São versos que andam a pé, que escapam de abismos e que deixam rastros à beira do rio, transgredindo regras como uma árvore de cabelos verdes despida no meio do asfalto.
Nora Prado diz com todas as letras: “Quero chegar num lugar onde se dispense a autorização para existir”. Nesse caminhar, observa: “Em cada dobra de mim revejo a cor antiga de que fui tecida”. Olha para a parede do quarto e vê a gravura da égua prenha que tem a assinatura de Vasco Prado. Perto de si, como guardiã do sono, a boneca de madeira que ganhou do pai. Dentro da cabeça, um baile de pandorgas (pipas, arraias) lembrando que “A espessura da vida” parte do tamanho da Terra e cabe na palma da mão.