De uma guerra não se pode esperar nada de bom. Mas o confronto entre Estados Unidos e Rússia, realizado em território ucraniano, vem consolidando cada vez mais a pregação planetária do ódio entre povos. A história mostra que a degradação, a negação e o aniquilamento da cultura do outro sempre foi uma estratégia de dominação.
O século XX, com duas grandes guerras mundiais, foi definido pela lógica do mercado sobre os estados e as sociedades. Isso não somente no mundo capitalista, liderado pelos Estados Unidos e União Europeia, mas também nos ex-socialistas, comandados por China e Rússia. Com a deificação econômica, consolidou-se o vale-tudo do consumo dos recursos naturais monetizáveis da mãe Terra, e as civilizações perderam o sentido de destino.
Chegamos ao século XXI encarando uns aos outros como concorrentes em um cenário exponencial de concentrações, desigualdades, escassez, migrações e intolerâncias. Daí o sucesso das políticas segregacionistas, da fé mercadológica e do populismo em todos os campos e cantos. E, claro, a permanência e o êxito da indústria de armas, tecnologia de destruição, e da desnecessária separação entre Ocidente e Oriente.
Tudo isso é tão perturbador que às vezes não dá para pensar que a situação pode piorar. E o pior é que pode. E essa piora está em curso e poderá definir o século XXI. Refiro-me à elevação para o nível de grandes proporções da prática do cancelamento do diferente – feita muitas vezes em nome das diferenças – espalhada em ações de grupos sociais e gangues políticas que buscam banir os que não se enquadram em seus perfis partidários, religiosos, tribais ou ideológicos.
O movimento de cancelamento sistemático de obras e de apresentações de autores e de artistas russos que vem ocorrendo em várias instituições europeias, estadunidenses e suas seguidoras é o estopim da bomba que poderá ter o efeito mais danoso da guerra na Ucrânia porque seus estilhaços abaterão de vez a noção de respeito entre os povos. Óbvio que partindo do princípio de que as vantagens tiradas pelos interessados nesse conflito não chegarão ao uso de armas atômicas.
As pressões diplomáticas e as sanções econômicas próprias desse tipo de conjuntura não têm o direito de martirizar a cultura. Os governantes são os responsáveis pelas guerras que promovem, e não as populações. Tanto que, quando se excedem, são julgados por Crimes de Guerra. Não há tribunais para condenar povos por isso. Os ataques à arte e à literatura russas decorrentes da invasão da Ucrânia é uma expressão dos exageros da negação do outro como forma de poder.
Russos e ucranianos têm laços históricos desde o século IX, quando o primeiro Estado eslavo foi sediado em Kiev, hoje a capital ucraniana. É natural que, passados tantos séculos, irmãos desenvolvam vontades culturais distintas. A atração pela vida europeia, assim como no passado aconteceu com a criação de São Petersburgo, é natural, saudável e renovadora. O problema está na militarização, e isso sim tem derramado o sangue de ucranianos e russos.
Estimular a russofobia, punindo a cultura russa pelo que está acontecendo, é o grande perigo dessa guerra. A propósito, a obra de Dostoiévski (1821 – 1881), autor russo que foi prisioneiro dos governantes do seu país, reflete a necessidade de reconhecimento da humanidade como algo muito além dos territórios e suas fronteiras. E não dá para pensar nisso anulando a cultura do outro.