Era comum a minha ida para Independência nos finais de semana. Estudante universitário em Fortaleza, levava uma trouxa de roupas sujas para lavar na casa dos meus pais e aproveitava para ir a festas no Rutilo Esporte Clube, retornando na segunda-feira pela manhã.
Na madrugada do domingo 6 de junho de 1982, essa sistemática sofreu uma inflexão inesperada. A festa estava animada, com amassos no escurinho da quadra de futsal enquanto no salão troava o som da banda “Os The Mickeys”, dos meus amigos Mourinha, Pandé e Leão.
Senti um silêncio ensurdecedor e encarei a escuridão deitada sobre as águas paradas do açude ao fundo, como se ela fosse uma velha conhecida com a qual sempre me encontrava ao ouvir “The Sound of Silence”, de Simon & Garfunkel. Percebi-me tomando o ônibus quase vazio, e segui o meu pressentimento.
Ao chegar na rodoviária em Fortaleza, havia uma pessoa me esperando. “Como assim?”, perguntei-me surpreso. “Ninguém sabe que antecipei a volta!”. Foi realmente intrigante. Acontece que, durante as sete horas de viagem, meus amigos haviam conseguido falar com a minha mãe por telefone e souberam da minha decisão súbita de retornar naquele domingo.
A situação era inimaginável para mim, porque minhas amigas e amigos de Fortaleza sabiam que eu me isolava nos finais de semana. Além disso, não era fácil ligar para Independência. A central telefônica da cidade, que ficava nas proximidades da “Sorveteria do Criança”, tinha poucos ramais, e as operadoras precisavam plugar uns cabos a cada ligação que atendiam.
O motivo para a dificultosa ligação, que possibilitou a espera na rodoviária, era avisar que o meu amigo Farias Frazão (1950 – 1982) tinha passado mal naquela madrugada e estava na UTI do hospital de Messejana. Chorando em alto silêncio, tomei um táxi e fui ao seu encontro. Depois de muita luta, consegui entrar na UTI.
Ele estava traqueostomizado, mas acordado e consciente. Havia pedido à enfermeira para me entregar um bilhete no qual avisava à Taúta (a tia com quem morava) que estava deixando de presente para mim os seus diários, escritos entre 1968 e 1981. Falamos de poesia e do dia em que participamos, na Volta da Jurema, da vigília planetária convocada por Yoko Ono, no domingo 14/12/1980, quando as cinzas de John Lennon (1940 – 1980) foram espalhadas no Central Park, em Nova York.
Frazão era paraplégico e vivemos muitas histórias juntos, comigo empurrando sua cadeira de rodas pela cidade, usufruindo do seu anarquismo e olhar satírico e da boa fortuna da sua amizade. Era na casa da Taúta, na rua 24 de maio (quase esquina com Antônio Pompeu), que fazíamos as reuniões da Cooperativa de Escritores e Poetas (CEP), um coletivo poético e musical que reunia figuras como Mário Gomes, Bernardo Neto, Mona Gadêlha e Falcão.
Dois livros registram as vozes do silêncio em Farias Frazão: “O barulho do silêncio” (1979), com capa em retalhos de clichês de Alberon, e “Meu grito é o silêncio” (1982), com capa em bico de pena de Descartes Gadêlha. “Eu estou morrendo, e ninguém faz nada? A humanidade está morrendo, e ninguém faz nada? A natureza está morrendo, e ninguém faz nada?”, perguntava enquanto se contorcia, como uma árvore caída nas fotos de Frans Krajcberg.
No dia dos namorados de 12 de junho de 1982, o meu melhor amigo partiu, depois de conviver com uma rara paralisia progressiva (Siringomielia) que o levou a morrer lentamente entre os 16 e os 32 anos. Durante esse tempo escreveu: “Pensei em tudo, menos em mim mesmo”. E hoje, 40 anos depois, sigo pensando nele e na agitação do seu silêncio.