Fabulações sacizísticas pululam pelo Brasil como espalham-se os ventos e seus redemoinhos. Os ninhos desse ser fantástico estão por todos os lugares onde nascem e renascem os valores da infância, da natureza, dos povos americanos originários e de descendência africana.
De toda a produção literária voltada para os contos de saci, um livro é o indez. Sabe aquele ovo que se deixa no ninho para que as galinhas ponham sempre no mesmo lugar? Pois é, o indez dessa saciologia toda é “O Sacy”, de Monteiro Lobato (1882 – 1948), publicado em 1921.
A notícia boa é que essa obra está sendo lançada em caprichosa edição fac-similar pela Graphien, com sobrecapa grafite e corte circular ao centro, deixando aparecer o detalhe da tricromia da capa original. No miolo, um português de “creanças” e “hontem”, e onomatopeias caipiras, como “nhen, nhin” (rangido de pau de bandeira), “lepte, lepte” (açoite com vara de marmelo) e “vukt, vukt” (balanço em cipó).
A nova edição traz, ainda, informações e reflexões sobre o saci. Marisa Lajolo destaca o Sacy como expoente do protagonismo negro; Cilza Bognotto fala de Narizinho como a primeira menina branca a beijar o rosto de um menino negro na nossa literatura; Vladimir Sacchetta lembra que o garoto Lobato conheceu o saci interagindo com negras e negros na fazenda do avô; e o editor Magno Silveira destaca a contribuição do ilustrador Voltolino (1884 – 1926) na representação da configuração social brasileira.
A infância em Lobato quer pegar o que não existe, porque para meninas e meninos a assimilação do mundo é táctil. Rubem Alves (1933 – 2014) dizia que a criança olha com as mãos, que o tato dá sentido à vista e provoca o saber. Por isso, Pedrinho tinha, ao mesmo tempo, receio e vontade de pegar saci.
Orientado pelo tio Barnabé, preto velho que havia sido escravizado, ele pega um saci. Mesmo sabendo que a mata, com seus bichos ferozes e plantas venenosas, é lugar onde não se deve ir, Pedrinho mente para a avó e entra na floresta encorajado por estar junto com o saci.
O livro “O Sacy” reaproxima o humano da natureza. Monteiro Lobato utiliza atraentes recursos para manter a vontade de busca nas crianças, como a poesia do olhar para o alto que permite ver “entremeios de céo, rendados luminosamente na copa das árvores” (p.16). Assim, o autor vai abrindo o campo imaginário para a criança aprender a perder o medo do desconhecido.
Cenas lindas se apresentam a quem lê, como o momento em que Pedrinho observa os bichos noturnos acordando com a noite. São impressionantes as imagens que dão acesso a segredos de ‘sacyzada’, que ‘nem olho de formiga’ é capaz de enxergar. O real e o imaginário em diversão conjunta da fauna, da flora e dos seres encantados.
Nas habilidades do Sacy, a criança pode se descobrir em camuflagens, disfarces e outros recursos de sobrevivência. Tem de tudo na natureza, mas é preciso saber disso para poder amar o verde, as florestas e a diversidade ambiental. A obra de Lobato apresenta à criança como a dinâmica da mata se retroalimenta em sua incrível organicidade.
Com “O Sacy”, o autor do Sítio do Picapau Amarelo desmistificou muito a figura diabólica com a qual o colonizador tipificou o mais expressivo duende brasileiro. Depois de uma ampla pesquisa sobre como o saci era percebido em várias regiões do país, produziu essa síntese, que fala de combate a ‘papa-creanças’ e do direito de ser livre como “o maior bem da vida” (p.38). É o indez!