O dep. Tiririca e a educação
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Março de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A educação está sempre em primeiro lugar no Brasil, quando o debate gira em torno de grandes problemas nacionais. Não há quem não demonstre preocupação com os casos, descasos e acasos das questões educacionais. A necessidade de acesso à educação está para o inconsciente coletivo brasileiro como a luta por alimentos está para o instinto de sobrevivência dos seres vivos.
A complexidade do assunto tem exigido de educadores e políticos soluções e medidas difíceis de serem identificadas e implementadas. É que embora o tema seja amplamente consensual, os interesses que o movem não são comuns. Tome-se como referência a retórica que for, mas em resumo a educação é formatação do ser social, quer para fins sobrepujantes ou libertadores.
O momento é de muita discussão. A pauta fala do Plano Nacional de Educação, da Lei de Responsabilidade Educacional, do controverso artifício das cotas, do suporte digital a professores e estudantes, dos experimentos do programa Ensino Médio Inovador e da reforma do Ensino Superior, só para citar alguns pontos. Sociedade, governos e mercado têm pela frente a definição de uma série de políticas educacionais que estabelecerão as diretrizes do ensino no País.
Em meio a essas e outras questões sensíveis, a Câmara Federal passa por um extraordinário dilema: o deputado Francisco Everardo Oliveira Silva (PR-SP), o palhaço Tiririca, demonstrou interesse de ser titular da Comissão de Educação e Cultura (CEC) do parlamento brasileiro. A reação dos especialistas foi imediatamente oposta ao que seria na visão culta uma intrusão de um indivíduo que, para assumir o cargo de deputado, foi submetido pela Justiça Eleitoral a fazer um teste provando que bem ou mal era capaz de ler e de escrever.
Os argumentos contra o pleito do deputado Tiririca tentam mostrar que ele não está preparado para contribuir com um setor historicamente tão complicado e, sendo assim, deveria deixar de lado a sua aspiração, cedendo o lugar na CEC para alguém que tenha currículo e que possa tratar o assunto com mais seriedade e competência. Dizem isso como se os especialistas em educação e os parlamentares letrados tivessem todas as respostas ou pudessem consegui-las sozinhos.
Sinceramente, acho uma mistura de tolice, soberba e falta de educação política essa tentativa de veto ao Tiririca. O Estado não pode desconhecer as relações igualitárias e universalistas que protegem os seus cidadãos. Essa atitude abre espaço para perguntas que precisamos nos fazer antes de tomarmos qualquer posição em casos assim. O que é mesmo a democracia representativa? Quem representa quem no sistema político que está aí? Por que esse tipo de distinção entre os eleitos?
A ousadia de Tiririca de querer participar da Comissão de Educação e Cultura após romper a barreira da classificação de analfabeto absoluto, saltar o estigma de baixo nível cultural, muitas vezes atribuído ao humorista popular, e escapar da sanha do preconceito contra nordestinos, coloca todo o parlamento frente a um inusitado desafio de convivência: aceitar a interrogação dentro da questão e não no final da frase. O deputado Tiririca é o sujeito de estudo em perfeita refutação ao que representa como objeto.
A Câmara Federal, as assembleias legislativas e as câmaras municipais de todas as regiões brasileiras estão cheias de parlamentares tão ou mais “analfabetos” do que o deputado de Itapipoca, eleito pelos paulistas. Muitos são formados apenas nas escolas da astúcia e da safadeza. Mas estão lá, pintando e bordando, nas mais estapafúrdias das negociatas, como regularmente se pode ver no noticiário. O afronta de Tiririca foi ter pensado que, por ser um artista, poderia muito bem fazer parte de uma comissão que trata da questão da cultura.
Acontece que a comissão é de educação também, daí o caráter disruptivo pichado na imagem de um “analfabeto” querendo cuidar do que ele não teve direito. Isso afeta os nossos padrões morais, porque vai de encontro ao questionável conceito que temos dos capazes e dos incapazes. O ponto mais delicado desse caso é a sua explícita rejeição. A condição de insuficiência escolar de Tiririca não deveria tirar dele a aptidão legal para praticar suas convicções, modeladas, não nas salas de aula, mas nos palcos e picadeiros, onde a vida se manifesta pela ruptura da fantasia.
Talvez o regurgitar de educadores ao sentirem o Tiririca goela abaixo tenha um traço de vergonha e de frustração. Afinal, ele nunca conseguiu o diploma de “doutor do ABC”, mas tem o diploma de “Deputado Federal”. Isso afasta do debate os motivos que levaram o humorista ao Congresso Nacional e introduz indagações desestabilizadoras e pouco simpáticas a quem vive de formular políticas de educação e se recusa a exercitar a curiosidade exploratória que fatos como esse proporcionam.
As perguntas incômodas começam a saltar à vista e os educadores falham por não quererem escutá-las. E se o Tiririca perguntar mais do que apresentar propostas? E se ele surpreender com proposições de iniciativas inovadoras? E se a sua experiência de palhaço revelar caminhos que facilitem a aproximação de educadores e estudantes? E se dos esforços que ele teve para trabalhar e sobreviver no mundo discriminado dos “analfabetos” puder fornecer novos insumos para a melhoria da qualidade na educação? Improvável? Por que?
Ao ser eleito deputado federal, Tiririca não escolheu ser outra pessoa. Pelo contrário, a prova de que optou por ser ele mesmo está na sua preferência por fazer parte da Comissão de Educação e Cultura. Essa escolha é o que me parece haver de mais lúcido em sua possível tentativa de descoberta do que faz ou poderá fazer em Brasília. Pode até não dar em nada. Pode ser um fiasco total. Entretanto, não há como saber o quanto ele pode ou não contribuir, caso lhe seja roubada a oportunidade de evidenciar suas intenções.
Com esse tipo de comportamento discriminatório, a parte ilustrada da esfera política e educacional que faz rotação e translação na Câmara Federal, parece abalada com o fato de a vontade de participar da CEC ter partido do interessado, pelo que lhe é de direito conquistado em sufrágio popular. Fosse uma experiência de privilégio que os estudiosos da educação estivessem consentindo a um pobre de um “analfabeto”, a polêmica não existiria, pois as coisas estariam em seu devido lugar: de um lado, os que podem ofertar, e, do outro, o carente.
Obedecendo a essa lógica da hierarquia do saber na democracia vacilante, a Comissão de Educação e Cultura estaria aparecendo na mídia por sua grandeza de conceder a um incauto o direito de fazer parte da sua experiência, numa relação dialógica, construtiva e transdisciplinar. No entanto, quem pôs a questão no centro do debate foi um legítimo representante do descaso e dos improvisos educacionais e culturais a que sempre foi relegada a maioria dos brasileiros.
O caso Tiririca expõe a inaceitável fraqueza que domina alguns aspectos políticos da nossa educação. Por mais que se escute falar em afetividade e intuitividade como novos parâmetros educacionais, ainda estamos presos mesmos é a uma forte razão prática, que entra em contradição ao se deparar com situações como essa em que o refugo à participação de um deputado numa comissão, não se dá por conta dos mecanismos de ocupação partidária de espaços, mas em decorrência de uma lamentável noção de cidadania de primeira e de segunda classe ainda preponderante em nosso País.