Tempestade democrática
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 10 de Março de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A onda de revoltas populares que vem desestabilizando as estruturas conservadoras de poder na África árabe e no Oriente Médio parece ter um ponto em comum: os ativistas dos protestos não querem a presença das grandes potências econômicas e bélicas envolvidas no conflito. Para eles, Europa e Estados Unidos não passam de sócios das monarquias, repúblicas e emirados que constituem uma dúzia de regimes de exceção que estão sendo derrubados pelo poder civil.
A Organização das Nações Unidas, ONU, finge que não compreende o recado e insiste em abrir “corredores humanitários” aéreos e terrestres, para levar “ajuda” às vítimas dos opressores e um pouco de “elixir” democrático. As pessoas mobilizadas rejeitam porque sabem que se permitirem a abertura desses corredores, por eles passarão toda sorte de infortúnio. A desastrosa invasão do Iraque, em nome da democracia, já tem uma década e não há o que comemorar.
A noção de que a guerra é um grande negócio para seus patrocinadores está tornando-a cada vez mais inaceitável. A luta armada é uma oportunidade de exibição de armamentos que, depois da desgraça, são postos à venda em nome da segurança. Ademais, uma guerra não destrói somente vidas; uma guerra acaba com carros, prédios, pontes, eletrodomésticos, equipamentos hospitalares, enfim, acaba com toda a infraestrutura do lugar onde ocorre. E, não por acaso, normalmente esses produtos são fabricados pelos “sócios” externos das elites nativas agregadas.
Às vezes, uma guerra precisa compensar com outras guerras os altos investimentos que não conseguem retorno imediato. Somente na guerra do Afeganistão, os EUA vêm gastando mais de cem bilhões de dólares por ano. Eles precisam de conflitos mais lucrativos, algo à base de gás e petróleo. Entretanto, os cidadãos e as organizações políticas da Tunísia, do Egito, da Líbia e dos demais países que experimentam esse fenômeno de mobilização social, esperam obter suas próprias respostas e sabem que a intrusão empobrece a experiência de construção de governos participativos.
Numa situação dessas, o discurso “humanitário” não convence mais. A demonstração de força disposta ao longo do Mar Mediterrâneo, com mísseis, fuzileiros navais e marines, destacados em navios, aviões e submarinos, somada às sanções políticas e bloqueios comerciais, também já não parecem revelar manobras confiáveis. No passado, o norte da África foi dominado pela Europa. Houve momentos de saque, de ocupação e de instituição da dependência, por meio de tutelas a governos “aliados”. Essa terceira fase passou a contar com a participação dos EUA.
Na atualidade, com o neoliberalismo cambaleante e o início da configuração de um mundo multipolar, muitas das nações árabes-africanas e médio-orientais converteram a brutalidade das ditaduras “sócias” das grandes potências em movimentos de libertação que resultaram em uma tempestade de areia democrática. Como em toda tempestade de areia, a visibilidade no cenário político é muito baixa. É praticamente impossível imaginar no que tudo isso vai dar ou saber de onde partiu exatamente toda essa propulsão revolvedora.
O extremo da opressão, da pobreza e da humilhação são de certo causas internas profundas, que geraram uma vontade também extrema de mudanças. Um fator bastante observado como de alta contribuição às revoltas é a presença, mesmo vigiada, da internet e da telefonia móvel na região. Com celulares que fazem fotos e canais virtuais para fazer mais rapidamente a mobilização, as pessoas descontentes passaram a assumir o papel de fontes e emissoras locais; fato que vem sendo chamado de jornalismo comunitário.
A impressão que dá é a de que a articulação cidadã, suportada por uma nova dinâmica econômica, pela emergência de movimentos sindicais e pelas novas mídias, passou a ter tanto poder de influência no âmbito da sociedade civil quanto as forças armadas têm nas esferas tradicionais do Estado. A cibercidadania desorganiza a trama do poder baseado nos conchavos, cooptações e em armas, ensejando o nascimento de um novo tipo de comportamento de difícil controle e dominação.
Os descontentamentos, que têm muitas causas, passaram a ter muitas formas e muitas válvulas de escape. Sem saber como interagir diante da nova realidade, as velhas potências coloniais, tais como França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Bélgica e Itália unem-se aos EUA para difundir a ideia de que aquela região é incompatível com a democracia e que, por isso, necessita de “ajuda” para não entrar em incontrolável guerra civil.
Como saber disso, se nos últimos séculos os países árabes-africanos não tiveram a menor chance de provar em contrário? Sempre há um colonizador por perto querendo “ajudar”, mas na verdade, dividindo nações amigas e colocando povos inimigos em um mesmo país. Foi assim durante a influência espanhola e portuguesa, foi assim no período da exploração comercial e financeira holandesa, foi assim no domínio francês, foi assim durante o auge do império britânico e foi assim com o controle do Egito e da Arábia Saudita pelos estadunidenses.
E agora? Agora, esse mundo quer tentar uma mudança sozinho. Sem discursos convincentes os ideólogos da governança global, a partir dos interesses dos EUA e da Europa, começam a dizer que as lideranças desses povos podem até conduzir uma revolução, mas não conseguirão estabelecer a ordem necessária para a governabilidade. É sempre assim; sempre um discurso de impossibilidade a desqualificar as pessoas e as organizações que estão tendo a coragem de enfrentar os regimes despóticos encorajados, patrocinados e usados por essas mesmas grandes potências.
Não existe nada mais antiquado do que essa retórica que visa diminuir os processos dos outros sem olhar para os seus próprios processos. A migração da Idade Média para a Modernidade na Europa não ocorreu assim da noite para o dia, da mesma forma que a guerra de secessão nos Estados Unidos (guerra civil) não acabou com tudo arrumadinho, pronto para começar uma experiência democrática. Só para se ter uma ideia dessa complexidade, até hoje os EUA não têm sequer um nome para designar a sua nacionalidade: como eles mesmos acham feio dizer “estadunidenses”, acabam erroneamente autodenominando-se de “americanos”.
Por outro lado, a controversa realidade européia não dá mais para os europeus baterem no peito e dizer que são exemplos de democracia a serem seguidos. Decretaram o fim do multiculturalismo, fecharam-se violentamente contra os imigrantes (sobretudo africanos) e vivem intensos e muitas vezes sangrentos conflitos étnico-culturais e políticos. Como a circulação internacional de notícias (inclusive pela internet) está sob o controle europeu e estadunidense, situações como a guerra de secessão entre valões e flamencos, na Bélgica, quase não aparecem e quando se tornam notícia, dificilmente recebem tratamento tão dramático e depreciativo como o caso das revoltas da África árabe e do Oriente Médio.
O que me chama a atenção no que percebo de rejeição dos árabes, africanos ou não, às aberturas de “corredores humanitários” pelas grandes potências, tem na história e nas práticas recentes da Europa e dos EUA muitos e muitos elementos que desautorizam suas falas em nome da democracia. O horizonte é turvo, inclusive porque o G-7 (EUA, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Canadá e Japão), grupo de países que manda na ONU, ainda não entendeu que a nova governança mundial passa por uma grande massa de partículas democráticas deslocadas pelos ventos da nova geopolítica mundial.