O Ecad diz que não é bem assim
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 24 de Março de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando alguém vai gravar um CD de música é necessário tirar o ISRC, o Código Internacional de Normatização de Gravação, uma espécie de CPF digital da composição. Com esse código, o fonograma, que é a música gravada, passa a ser identificado na extensão dos seus titulares de direitos autorais e conexos, dentre outras informações, do tipo procedência, gênero e data de gravação original. Assim, toda vez que uma música é executada, a leitura do ISRC oferece o nome dos seus titulares e até a percentagem dos seus direitos.
No Brasil, o ISRC pode ser emitido por qualquer uma das nove associações de autores e essas associações devem encaminhar o relatório de cadastro de fonogramas ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, Ecad. Com um banco de dados informatizado e farto, o Ecad tem tudo para fazer um controle eficiente da execução pública, inclusive no que se refere às canções apresentadas em shows e eventos, com base nos borderôs fornecidos pelos promotores, na hora de pagar o Direito Autoral.
Do mesmo modo que emitem o ISRC para fonogramas, as associações são responsáveis também pela emissão do ISWC, o código de referência internacional para a identificação de obras musicais, não necessariamente gravadas. De sorte que o Ecad tem em mãos todo um ferramental que o torna apto a administrar a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais dos titulares vinculados às suas associações filiadas. Essa é a teoria, pois na prática há dois graves problemas nesse esquema: um de obrigatoriedade na arrecadação e o outro de falta de transparência na distribuição.
No meu artigo, intitulado “Ana de Hollanda e o Direito Autoral” (DN, 30/12/2010), replicado no portal Cultura e Mercado (24/02/2011), defendi que algo precisa ser feito nessa dissonância administrativa, para que os autores não fiquem à mercê do cartel do Ecad, montado em um sistema de excelência tecnológica e policialesca para arrecadar, mas cheio de corpo mole e de “deficiência prática” na hora de distribuir. A superintendente executiva do Ecad, Glória Braga, considerou o meu posicionamento uma “infeliz declaração” no artigo “Resposta do Ecad a Flávio Paiva”, publicado naquela revista blog (14/03/2011).
Ela ressalta que “o Ecad não pode ser considerado um cartel, pois as atividades de arrecadar e distribuir direitos autorais não são de natureza econômica, já que a música não pode ser caracterizada como um bem de consumo a ser ditado pelas regras de concorrência”. Eu diria que apesar de as associações que mantém o Ecad serem entidades sem fins lucrativos, elas existem por motivação econômica e, por terem o monopólio da arrecadação e da distribuição dos direitos de terceiros, inclusive de não associados, guardam a característica de cartel.
Em sua réplica ao meu artigo, Glória Braga argumenta que se o artista filiado a qualquer das associações “não estiver satisfeito, seja com a política adotada seja com a presidência de sua associação, que busque outra opção”. Como buscar outra opção se o sistema de gestão do Direito Autoral relativo à execução pública tem controle exclusivo do Ecad? Os autores que não aceitam essa ingerência compulsiva precisam de alternativas legais. Talvez seja possível criar um selo que distinga as criações musicais controladas pelo Ecad, de modo que as demais possam construir outras trilhas.
Desta forma, muitos artistas brasileiros poderiam se livrar do recolhimento do pagamento de direitos autorais ao apresentarem suas próprias obras. Considerando que do jeito que está a certeza de não receber perde de longe para a certeza de ter que pagar, alguns recorrem a termos de “renúncia”, mas é tão complicado convencer o Ecad a aceitá-los que em muitas ocasiões sai mais “barato” pagar e esquecer que se pagou. Em sua resposta, a executiva do Ecad conclui que “sem nenhuma supervisão do Governo, essa estrutura distribuiu, em 2009, R$ 318 milhões para 81.250 criadores de música”. Esqueceu de informar que no mesmo ano a entidade reteve R$ 65 milhões na rubrica “taxa de administração”.
Com o potencial de recolhimento de direitos autorais por parte de algumas empresas do mercado de mídias, provedores e buscadores digitais, provavelmente serão registrados aumentos na arrecadação e na distribuição. Nesse cenário surge o fantasma da falta de transparência no repasse dos recursos aos titulares. A superintendente executiva do Ecad diz que “todas as informações sobre o trabalho da entidade estão disponíveis no site www.ecad.org.br”, porém o que de mais próximo com transparência se vê no portal da entidade é um ranking de artistas com maior rendimento.
O Ecad não teria perdido sua atração de entidade de autores, caso tivesse trocado a política de conluio com os majoritários pelo desenvolvimento de uma política de respeito aos minoritários. Tomando como base os números oficiais do próprio Ecad, “que representa atualmente os direitos autorais de execução pública de 342 mil titulares de música”, menos de 24 por cento dos autores recebem qualquer repasse da entidade, numa total falta de senso de prestação de contas, de noção de equidade e de compromisso com os associados. Somente a adoção de boas práticas de governança salvaria o Ecad dessa crise de desconfiança na relação com as suas partes interessadas.
Entre os defensores do Ecad em sua forma atual é comum ouvir a queixa das dificuldades de receber o pagamento de quem tem o dever de pagar Direito Autoral e não paga. Muitos usuários já estão pagando a empresas de comércio de conteúdos pela internet para ter acesso a bens intelectuais, mas as parcelas destinadas a direitos autorais não estão chegando aos criadores. Usam essa dificuldade de arrecadar para justificar a dificuldade de “fazer justiça distribuindo migalhas, por mais sofisticado que seja o sistema de distribuição”. Acontece que essas migalhas têm dono e, como não existe uma regra clara da destinação desse dinheiro alheio, o Ecad perde força entre os autores e, consequentemente, na sua luta para arrecadar.
O raciocínio de que é praticamente impossível distribuir valores extremamente insignificantes tem sentido. Todavia, esse juízo não vale para quem se sente ultrajado em seu direito. Imagino que se fosse delimitada pelo menos uma fronteira para a viabilidade dos autores receberem os repasses devidos pela execução pública de suas obras, o mal-estar da falta de transparência seria reduzido. Neste caso, a prestação de contas com os minoritários somente seria efetuada quando o interessado alcançasse um determinado valor a receber. Para isso, seria necessário que o autor de obras de baixa freqüência de execução pudesse acessar no portal do Ecad a evolução do seu ganho.
O fato de qualquer autor cadastrado em qualquer das associações que constituem o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais poder acompanhar, por um sistema de busca elementar, a movimentação financeira resultante do seu trabalho já seria um grande avanço na aproximação do Ecad com os criadores que lhe dão razão de ser. Infelizmente o problema não é de cunho tecnológico, mas de ausência de discernimento por parte dos controladores da instituição. Enquanto a sociedade reclama a flexibilização de obras para fins de uso pessoais e educacionais (não comerciais, não publicitários, não religiosos e não políticos) a direção do Ecad fecha-se em seu despotismo e apenas diz que não é bem assim.