Assisti ao espetáculo “P3rif3ri@”, de estudantes, educadoras e educadores da Edisca (Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Crianças e Adolescentes), sábado (3/9) no Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Fiquei comovido com a beleza potente de tantas mensagens em forma de dança que pedem reflexões e respostas sobre questões centrais e periféricas da vida urbana.
Com um repertório envolvente de expressões em poesia e prosa corporal, esse espetáculo compartilha a realidade vista e revista por crianças e jovens que habitam áreas urbanas apartadas, onde normalmente são classificadas apenas como vulneráveis sociais. Em “P3rif3ri@”, elas e eles dão visibilidade a si mesmos e às suas realidades em coreografias de reconfigurações perceptivas.
Há três décadas a Edisca vem abrindo vasos comunicantes na transversalidade da arte, desnaturalizando essa excludência com recursos artísticos construtores de uma cultura comum, menos deslocada e menos desfocada das possibilidades vitais. Assim, a dança do cotidiano torna-se a função, e a cidadania inclusiva, o argumento de uma ação educativa sempre associada à íntima realidade da condição humana.
Da plateia nota-se o quanto o horizonte como uma corda bamba existencial reduz sua insegurança na infância e juventude dos quase duzentos bailarinos e bailarinas que se empenharam para que o palco principal da cidade fosse ocupado com uma autêntica combinação de interioridade e exterioridade em forma de ecos visuais e imagens sonoras, na relação entre a dança e a cidadania.
Os temas das narrativas coreográficas e cênicas apresentados revelam como a crise de significados que abala o mundo afeta o viver nos campos e contracampos sociais, políticos e econômicos; isso pela autoexpressão das crianças e jovens encorajadas e encorajados pela pedagogia da arte praticada na Edisca por meio de danças de corpos falantes, gritantes e brincantes.
No espetáculo “P3rif3ri@”, a realidade da infância de rua, do desemprego, da fome, da insegurança, do racismo, dos preconceitos, do androcentrismo e de tantas outras causas e efeitos das desigualdades preenchem o espaço cênico em um misto de revelação, de remodelagem e de busca por direitos e emancipação social. Tudo em sincronia com uma bem-cuidada trilha sonora, um belo figurino pinçado do cotidiano periférico e uma luz de brilho e matizes reveladores.
A vida urbana periférica é muito intensa e inextricável em suas informalidades, gambiarras e invenções solidárias e de alegrias. A Edisca ativa as singularidades dessas evidências e suas vitalidades desejantes quando, em seus espetáculos, crianças e jovens esbanjam talento de autoconhecimento e respeito nas representações de si mesmos e do mundo onde vivem. Faz isso desde que foi fundada pela bailarina e coreógrafa Dora Andrade, diretora geral da instituição.
O pensamento sócio-urbano fortalezense foi ao longo dos anos impactado por apresentações da Edisca sobre as famílias sobrevivendo em aterros sanitários (“Jangurussu”), o etnocídio dos povos originários (“Koi-Guera”), as influências e tensões na trama cultural das cidades (“Urbes Favela”), a questão ambiental (“Sagrada”) e o descompasso comunicativo de um mundo carente de alteridade (“Só”), entre outros espetáculos contextualizados, mas não datados, e mantidos em coerência de idealização, apesar das dificuldades para se tocar um projeto dessa magnitude.