Pedaços de laranjeira-do-mato, de canela-preta, de mangue-branco ou de outras plantas do litoral catarinense podem muitas vezes ser vistos ao sabor dos movimentos das ondas do mar, das correntes de vento, do calor do sol e da frieza da noite nas areias da praia de Pântano do Sul, na ilha onde está localizada parte significativa da capital Florianópolis.
É dessas madeiras desgarradas ao longo da enseada de micromarés e areia branca, ladeada por morros de rochas vulcânicas e graníticas cobertos de vegetação remanescente de Mata Atlântica, que o escultor uruguaio Marcelo Baptista colhe a matéria-prima do seu trabalho. Faz isso desde 2002, quando passou a viver nessa pequena faixa de litoral habitada por pescadores, profissionais do turismo e artistas brasileiros, argentinos e uruguaios.
Nas últimas duas décadas ele tira do mar madeiras tortas, de linhas curvas, contorcidas, com protuberâncias ou lisas para soltar no mundo da arte. Aproveita as qualidades adormecidas da matéria e a transforma em esculturas de aves, tirando-a do campo da realidade objetiva para o simbólico, onde se dá a interdependência sensível entre a imagem percebida e a imagem criada.
Marcelo Baptista está em Fortaleza participando da Fenacce (Feira Nacional de Artesanato e Cultura), evento realizado no Centro de Eventos do Ceará (até o próximo dia 25), com o tema “Arte de Toda Parte”. Com ele, estão algumas peças que um dia foram madeiras náufragas e, mesmo não andando, não voando, não respirando, nem botando ovos e nem sentindo medo dos humanos, tornaram-se criaturas vivas na subjetividade da arte.
Esse trabalho tem paralelos inventivos assemelhados ao de Hélio da Silva, o nativo da Lagoa de Dentro que, na estrada da praia de Ariós, pelo litoral leste cearense, mantém há décadas, em frente à sua casa, a Praça do Pau Torto, cheia de aves de madeiras mortas. Traz também o conceito da vivacidade do toque artístico ante as circunstâncias transitórias da matéria, presente na obra do Zé Pinto (1925 – 2004) e suas figuras de sucata de ferro.
A dialética entre conteúdo e forma marca a travessia dos sentidos nessas intervenções deflagradoras de novos olhares sobre a natureza. As obras de Marcelo Baptista trazem o inevitável da adaptabilidade como recurso da consciência sobre fragmentos do real percebido. Mudam o comportamento das madeiras e o das pessoas que sentem essa mudança. O artista age aí como agente ecológico atraído pela fecundidade multiplicadora do belo.
Ao transformar pedaços de pau em esculturas de tons naturais ou policrômicos, o artista vê nos volumes e contornos de cada fração resgatada do mar a intenção das aves. Na natureza não existe arte, a arte é humana, embora exista a estética natural, a beleza como expressão da vida. O impulso à fruição do que parece largado leva a reordenamentos informais que transitam do processo natural para o processo criativo produzindo novos e diversos acontecimentos.
Marcelo Batista contou-me que, muitas vezes, ao serem transportadas, essas peças são quebradas, e, quando isso acontece, ele as refaz reaproveitando os pedaços, e, dali, já sai outra ave. Ele compara essa mutação à nossa própria existência. Para ele, à medida que o tempo passa, nos submetemos a uma coleção de consequências que independem de definições; apenas nos modelamos e somos modelados com o passar dos anos. O substantivo dessa arte é o seu estado de movimento.