Flávio Paiva é convidado pelo artista plástico Bené Fonteles, organizador do livro-cd “NicEstrigas – Arte e Afeto” (Terra da Luz Editorial), a publicar uma síntese do seu escrito O anticlube lírico do Mondubim neste livro e videodocumentário que retrata em imagens e textos a vida, a obra e o ambiente ecológico da casa-museu do casal Firmeza.


O anticlube lírico do Mondubim

Flávio Paiva

Na rua principal do Mondubim Velho, depois da capelinha de Nossa Senhora da Conceição, uma pequena entrada para tráfego carroçável ladeia os trilhos da via férrea Fortaleza-Baturité e dá acesso ao Mini Museu Firmeza. Não precisa estar muito atento para notar que ali é um lugar incomum. Mangueiras centenárias emolduram a casa alpendrada, ornamentada por orquídeas, roseiras, jasmineiros, manacás e resedás de um jardim de flores cheirosas e de variadas cores. A parede exibe a pintura de um rio visto de cima, refrescando o olhar de quem chega. Os afeitos a uma boa conversa contam com espaço sombreado de areia batida e algumas cadeiras e redes sempre armadas para o exercício do ócio reparador.

O pé de carambola parece que não para de botar. Está permanentemente carregado e pronto para virar saborosos doces de estrelinhas que a Nice adora fazer. Com ele, entram em coro as pitangueiras, seriguelas, cajueiros, goiabeiras, coqueiros, sapotizeiros… O ipê roxo assiste a tudo ao lado de um surrado cata-vento. Um pouco mais afastado o tronco do baobá vai encorpando de tantas fábulas. Pássaros, borboletas e beija-flores são testemunhos do tratamento minucioso dado à tranquilidade no lar dos artistas plásticos Estrigas e Nice Firmeza, que desde 1969 virou museu.

Trata-se de uma casa integrada à natureza, sedimentada espontaneamente por seus frequentadores como um ambiente não-hierarquizado de convivência. Admiro a capacidade transformadora que eles imprimiram àquele lugar extraordinário. É ali onde se refugiam artistas plásticos cearenses que não aceitam pintar conforme a onda novidadeira dos curadores dos salões de arte. No Mondubim eles não precisam pintar quadros para tentar agradar às tendências do mercado, pintam sentimentos, emoções. As cores de suas telas podem ganhar assim outros tons e revelar outros dons do caráter subjetivo e fugidio da beleza.

A fúria urbana insiste em enxotar Estrigas e Nice do sítio-museu, com ameaças de obras viárias, imobiliárias e sensação de insegurança, mas a sabedoria dos mais de oitenta anos que cada um deles já viveu revida a esses assédios plantando flores e reunindo amigos para longas e desinteressadas conversas. A disposição permanente para a inventividade e o jeito espirituoso de conduzir a vida passaram a ser os seus escudos cotidianos. Sem contar com a força da serenidade dele e a inquietude dela, dosando o segredo da vitalidade dos dois no avançar dos anos.

Das conversas com Estrigas, no ritmo da quietude instigada, percebo que, mesmo sendo ele um renomado pintor, com importância também nos campos da pesquisa de arte, da produção de livros e da apresentação de catálogos, seu currículo mais precioso é o da florestação ética da amizade sincera que procurou semear ao longo da vida. Os bate-papos sem dogmas que acontecem no Mondubim varam o dia em discussões sem fim, embaladas pela dança das sombras das árvores ao som da lúdica e estridente passagem do trem. As rodas de amigos que chegam e se vão como se nunca saíssem, preservam as qualidades integrais desse anticlube lírico do Mondubim.

Na roda de afinidades múltiplas da casa-museu, enquanto se fala, aprende-se a dar medida à vida, a observar as constituições do mundo e a valorizar mais o que mais se aproxima da noção de realidade essencial, tendo a arte e o livre arbítrio do artista como instrumento de interferência. A sensibilidade do casal, o temperamento e a expressão pictórica de cada um dão testemunho ao sabor da diferença. Ele, suave, no jogo de tonalidades assemelhadas para não se reabsorverem; ela, berrante, no carrossel de cores da arte naïf. É o discurso do inconsciente montado no cavalete arquetípico da arte, assim como na natureza os bichos, os pássaros e as flores, utilizam-se das cores para seduzir, alertar e, quem sabe, para que a gente possa viver em um mundo mais agradável e alegre.