Flávio Paiva é convidado pelo editor José Xavier Cortez para prefaciar sua biografia “A Saga de um Sonhador” (Cortez Editora) escrita pela socióloga Teresa Sales e pela jornalista Goimar Dantas. Esta obra conta da trajetória do migrante potiguar, ex-lavrador e ex-marinheiro que viveu mil peripécias até chegar a São Paulo e se transformar, com apoio de Paulo Freire, em um dos editores mais respeitados do Brasil.
Sucessivo como a vida
Flávio Paiva
Poucos dias antes da festa de abertura das comemorações dos 30 anos da Cortez Editora, realizada no dia 1º de março de 2010, no TUCA, teatro da PUC/SP, o editor José Cortez comentou comigo que ainda não estava tão confortável com a ideia de ter sua história publicada em vídeo e livro. Lembrei-lhe de que certa vez ele me disse que gostava do jeito entusiasmado como eu falo dos meus livros e de eu ser um autor que não tem vergonha de vibrar com o que faz. Devolvi-lhe o comentário, com o intuito de reforçar o quão é importante para a sociedade conhecer a vida e a obra de uma pessoa caracterizada por um obstinado espírito realizador, como o dele.
Comentei que a relutância demonstrada por ele é natural, mas isso não deveria inibi-lo de tornar pública a sua trajetória exemplar. A história de José Cortez se mescla com a história da livraria e da editora que levam o seu nome. Por todos esses anos ele não permitiu holofotes voltados para si. Sempre jogou luzes para que o pensamento crítico brasileiro se libertasse das sombras do determinismo colonial. Disse-lhe que já é hora de ele ser visto, de ser homenageado e de desfrutar do respeito conquistado com tanta sensibilidade e garra. Ele fez um gesto de “se é assim” e despediu-se no seu simpático passo puxadinho.
O evento passou, o vídeo “O semeador de livros”, dirigido por Wagner Bezerra, foi lançado e dias depois ele me telefona para perguntar se eu poderia fazer o prefácio do livro “A saga de um sonhador”, escrito pela socióloga Teresa Sales e pela jornalista Goimar Dantas. Meu aceite foi imediato. Não é todo dia que se tem a satisfação de ler os originais e de poder se pronunciar nas páginas iniciais de uma obra tão especial, sobre alguém que é sucessivo como a vida; alguém que não tem medo de admirar e que é admirado; alguém que aprendeu a ser grato e por quem muitos têm gratidão; alguém que enfrentou situações muito difíceis, agarrado ao ímpeto de quem entende que a vida sempre reserva um cantinho para quem está disposto a abraçar uma boa causa. Ele abraçou o livro.
O modo de se relacionar de José Cortez rima brejeiro com por inteiro. Ele tem a inspiração de se sentir à vontade com a vida prática. Não há espaço para simulacro em quem compreende que merece ter um lugar no mundo. José Cortez é assim, um ser humano surpreendente. Criado no barro do chão, nas brenhas, Zé de Mizael – como é conhecido na família, que se estende pela comunidade do sítio Santa Rita, município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, onde nasceu – apreendeu traços de uma etiologia cariboca, modelada nos valores do trabalho, da família, da solidariedade e da moral sertaneja, que ele posteriormente levou para a empresa.
À primeira vista, as duas partes que compõem “A saga de um sonhador” parecem dois livros em um só volume. Um com viés acadêmico e outro com abordagem jornalística. Mas não são dois livros, são dois jeitos de tratar os dois momentos definidores da vida do editor, mantendo a configuração inversora e casual da sua história: o livro não foi pensado assim, mas aconteceu assim, com duas autoras cuidando de duas vertentes narrativas, que se unem pelo que há de positivo nas imperfeições humanas. A consequência dessa concatenação suplementar é que a obra de Teresa Sales e Goimar Dantas fala com emoção de uma vida e de uma obra seladas na confiança de quem está sempre pronto para reacontecer.
Com base na experiência de um sonhador em busca permanente de concretização dos seus sonhos, nota-se que a segunda parte depende da primeira, menos por sequência cronológica e mais por sincronicidade. Sem o alicerce erguido nas aventuras do menino e do jovem Cortez, dificilmente haveria o empresário de sucesso, transbordando senso de dever e amor pelo que faz. O livro aborda os feitos de José Cortez pela evocação das essências fundantes do seu caráter, condição que resultou na concretude lastreada pelo desejo de realização à procura de fazer acontecer.
Na primeira parte, a vida do biografado, mais voltada para a relação da infância e da sobrevivência, momento de preparação da sua alteridade, é contada e bem contada por quem estuda e conhece profundamente o ambiente onde ele se formou para a vida, a professora Teresa Sales. Socióloga, presidente do Conselho Diretor do Centro Josué de Castro, pesquisadora e autora de livros que abordam as temáticas relativas às transformações no mundo rural nordestino e em migrações internas brasileiras, Teresa Sales oferece mais do que uma biografia, ela presenteia o leitor com um retrato sociocultural, econômico e histórico do sertão. Com olhar atento, ela faz uma síntese nordestina em recorte que concilia o povoamento do semiárido, as relações no campo, o etos da família camponesa, a questão fundiária, a escravidão e as migrações. Ao mesmo tempo, mostra um José Cortez de alma tapuia, em um trançado de infância que diz muito da infância do Brasil.
Na segunda parte, a maneira mais solta de condução do texto foca José Cortez em sua fase mais madura, depois que foi expulso da Marinha, momento em que enfrentou os desafios de se estabelecer na capital paulista e passou a acolher familiares para trabalhar e estudar. Goimar Dantas, que é jornalista potiguar radicada em São Paulo, onde realiza trabalhos de valorização da memória da cidade, coloca a saga de José Cortez em um “guarda-garoa” modulado por referências culturais: recorre ao “E agora, José?” de Drummond, ao rapaz latino-americano de Belchior, à máxima de que “um país se faz com homens e livros”, de Monteiro Lobato, ao grito de “um por todos e todos por um” dos três mosqueteiros de Alexandre Dumas, ao “Grande Sertão”, de Guimarães Rosa, ao “Xote das meninas”, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e alusões a J.D. Salinger, James Dean, Fred Astaire, Menudos e Pedro Almodóvar.
Ambas as partes, com seus diferentes sotaques estilísticos, unem-se no ponto de coesão e coerência da personalidade do biografado: a coragem de existir nos sonhos, nos gestos e nas ações. Da soma das duas partes, resultam linguagens complementares que se projetam em uma obra inteira e disruptiva. Quer na primeira, quer na segunda parte, José Cortez aparece sempre fiel ao seu espírito criativo e à busca de realização, como um hábil mediador na cena cultural entre autores e leitores. Como acontece nas duas partes da sua biografia, ele rompe com a linearidade dos modelos mentais dominantes, para contribuir com a inserção do Brasil como protagonista do mundo multipolar, pluriétnico e inclinado ao que chamo de social ambientalismo participativo.
O livro de Teresa Sales e Goimar Dantas apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram José Cortez a ser um agitador de ideias, um cidadão orgânico, no desempenho do seu papel de editor, por meio do qual espalhou dedicação ao livro e à leitura, numa inusitada capacidade empreendedora. Cortez é um dos emblemas do livro no Brasil, uma pessoa com notável respeitabilidade, capaz de unir em si grande modéstia e muita determinação. Aprendeu a escala da liberdade de apreciação e a tecedura entre o universo do saber e do conhecimento, na cultura e na ciência. Sua biografia destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil.
No garimpo, descrito por Teresa na primeira parte do livro, José Cortez buscava minerais preciosos, tempo em que – ele me disse certa vez – costumava comer preá assado embaixo dos matos para se proteger do sol inclemente. Na editora, parte reportada por Goimar Dantas, ele aparece garimpando e publicando bons originais, rodeado por uma equipe de apaixonados por livros que, sem pretensões professorais, educam e instigam pensar, movidos pelo pendor democrático do saber e do conhecimento, e pela convicção de que ler é um ato de aspiração.
Sempre respondendo com postura afirmativa a cada momento brasileiro, José Cortez está entre os atores culturais de maior relevância das últimas décadas.
Como formador de intelectuais e preparador de cidadãos, passou a ocupar lugar de destaque na galeria dos grandes editores brasileiros. Financiou o próprio sonho com trabalho duro e em condições precárias de realismo social, para fazer educação no Brasil. Sem ele e sem os autores que vem editando ao longo dos anos, certamente muitos estudiosos e educadores não seriam os mesmos. Por tudo isso, “A saga de um sonhador” é um livro que merece ser ouvido como se ouve a quem verdadeiramente tem algo a contar.