Cresce por toda parte e aos borbotões o número de petshops. Assim como as farmácias, essas lojas, que têm de tudo e algo mais para animais de estimação, surgem a todo instante nos centros urbanos brasileiros. A grande e progressiva quantidade de farmácias espalhadas pelas cidades dispensa o diagnóstico de que a doença tem sido uma vantajosa oportunidade de negócios, embora o discurso do mercado de medicamentos valha-se da neurolinguística para dar à questão um sentido de saúde.

A proliferação de petshops, diferentemente das farmácias, é, por sua vez, um fenômeno que requer ser observado com cautela especial em um cenário de imenso contraste entre o tratamento dado pela sociedade às crianças e aos animais de estimação. E nada melhor para pensar sobre isso do que relembrar a provocação do “Rock da Cachorra”, feita quatro décadas atrás pelo compositor goiano Leo Jaime, e lançada pelo cantor carioca Eduardo Dussek no álbum “Cantando no Banheiro” (1983).

O primeiro ponto de atenção dessa sátira diz o seguinte: “Troque seu cachorro por uma criança pobre / Sem parentes, sem carinho, sem rango, sem cobre / Deixe na história de sua vida uma notícia nobre (…) Tem muita gente aí que está querendo levar uma vida de cão”. O segundo adverte que nessa ironia a valorização da infância não significa qualquer negligência com os animais: “Dê guarida pro cachorro, mas também dê pro menino / Senão um dia desses você vai amanhecer latindo”.

Inicialmente essa crítica bem-humorada foi feita para zombar das madames e seus bichinhos com pedigree, ganhando, portanto, aspecto simplesmente diversional. Com o passar das décadas, esse hábito das senhoras burguesas virou lugar comum em um mundo de buscas exageradas por simbolismos de ascensão social, identificação grupal e necessidades afetivas, resultante do combinado de avanços neoliberal, neopentecostal e neorrevolucionário.

O LP “Cantando no Banheiro”, de Eduardo Dussek, que teve como principal hit o “Rock da Cachorra” foi lançado há 40 anos.

O mercado transformou bichinhos de estimação em produtos de consumo; a teologia da prosperidade amplificou a pregação de que, para o indivíduo se dar bem, deve sempre enxergar o semelhante como um adversário; e a onda do politicamente correto abriu corações para os animais, enquanto seres sencientes, discursando pela infância abandonada de um lado e, do outro, dando um padrão de vida exemplar aos pets.

Esse conjunto de condutas decorrentes de convergências econômicas, dogmáticas e políticas leva ao esmaecimento da percepção do ‘outro’ nos planos de viver. Pelo entendimento simbólico do “Rock da Cachorra”, tudo parece traduzir-se no gesto ‘civilizatório’ de apanhar cocô na calçada, como demonstração de cuidado com a natureza e de respeito aos passantes. Tais acenos refletem vitórias individuais em meio a frustrações coletivas.

A hipérbole comportamental pet pode ser pensada também como uma liberalidade do campo do brinquedo, do jogo, do passatempo. Neste caso, seria fruto do infantilismo social, em que adultos regridem a uma espantosa identificação projetiva, com a qual substituem pessoas, que requerem entendimento mútuo, por seres dóceis, que obedecem aos seus donos. Isso não quer dizer que criar animais de estimação seja algo fútil; o que está em questão é a prática em demasia.

Quando o “Rock da Cachorra” foi lançado, só quem supostamente fazia o que queria eram as madames. Hoje, essa afirmação está generalizada, e nós, humanos, temos dificuldade de respeitarmos uns aos outros. Grande parte da ansiedade e da angústia dos tempos atuais resulta da inversão do sentido de liberdade, que deixou de significar a autonomia de alguém com relação às opções que toma e pelas quais se responsabiliza para dar vazão aos ditames de desejos muitas vezes reprimidos. E quem não controla os desejos não tem liberdade.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/05/08/40-anos-do-rock-da-cachorra.html