Toda guerra choca, causa tristeza e coloca em dúvida o que se costuma chamar de avanços civilizacionais. A busca da solução de conflitos pela força é um ato primitivo do qual a humanidade ainda não conseguiu se livrar. Por trás dessa forma de dominação, existe a vontade hegemônica e uma poderosa indústria bélica.
O que está acontecendo na Ucrânia, se fizermos um recorte do ponto de vista do conflito armado em si, da morte de civis, da produção de mutilados, do caos social e econômico, do desespero da fome, dos deslocamentos internos e de refugiados temerosos, está ocorrendo também em dezenas de outros conflitos armados pelo mundo.
Situações de invasões, guerras civis e massacres, pelos quais passam Iêmen, Palestina, Afeganistão, Mianmar, Somália, República Centro-Africana, Sudão do Sul, Haiti, Nicarágua, Venezuela e vários outros países do Oriente Médio, da Ásia, da África e da América não têm normalmente a mesma cobertura de mídia humanizada e comovente que está recebendo o conflito no Leste Europeu, por serem consideradas subnações.
Em todos, há em comum o apoio ou patrocínio de grandes potências orientadas pela ambição de supremacia e pela economia da guerra. Essa participação se dá efetivamente em forma de fornecimento de armas, envio de tropas, treinamento militar, financiamento de grupos minoritários, armamento da população e formação de juntas militares e milicianas para golpes de Estado e controle de territórios.
O que tornam diferentes e mais estrondosos os combates no espaço ucraniano são os movimentos de acomodação de blocos geopolíticos que estariam deslizando da unipolaridade estadunidense para uma tripolaridade envolvendo russos e chineses. Na nova configuração, a governança planetária estaria sob o controle de duas economias de estado e de uma economia liberal.
A guerra na Ucrânia, como decorrência do choque entre a Otan e a Rússia, tem para a geopolítica um impacto semelhante ao que a colisão das placas tectônicas tem para a geociência. Ou seja: dois gigantescos blocos de densidade militar e econômica colidem, produzem abalos sísmicos, terremotos e o nascimento de novas montanhas e cordilheiras.
O governo estadunidense, no conforto de não ter a guerra em seu território e de saber que os conflitos armados resultam na bilionária venda de armamentos e na reposição de bens de consumo destruídos nos ataques, mobiliza a União Europeia na imposição de sanções econômicas à Rússia, que, por sua vez deve estar contando com a cooperação financeira e comercial da China.
O tema do ataque a Estados soberanos precisa ser melhor regulamentado na nova ordem. Os argumentos norte-americanos de que a Rússia rompeu princípios do direito internacional soam evasivos, haja vista que os Estados Unidos são os campeões mundiais dessa prática, que, em muitos casos, elimina ou destitui presidentes eleitos, como ocorreu recentemente na própria Ucrânia.
O golpe que abriu espaço para a ascensão à presidência ucraniana de uma celebridade midiática acusada de neonazista tem sua trama bem elucidada no documentário “Ucrânia em chamas” (“Ukraine on Fire”), de 2016, produzido pelo cineasta estadunidense Oliver Stone. Nesse filme, disponível no YouTube, é possível compreender que essa guerra na Ucrânia não começou com a operação militar russa em 24 de fevereiro deste ano. Trocando em miúdos, o que está em curso pode ser a consolidação do mundo tripolar.