A água na vida da gente
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 19 de Outubro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A água, cuja presença em nosso meio é marcada pela sensação de ausência, é indiscutivelmente a grande fonte de excitação e inspiração da cultura nordestina. A tensão da sua escassez e o frenesi da sua abundância alucinam nossa gente para além do drama real. A chuva, os rios correndo e os açudes sangrando formam o sistema placentário vital dessa geografia humana. Exceção. A regra mesmo é a ameaça da seca, a expectativa ansiosa, que faz emergir a reação fóbica do extravio. A condição de inevitabilidade apontada pelas reservas em baixa, como sinal de que pode faltar água a qualquer momento impulsiona as pessoas ao gasto nervoso e excessivo.
Nesse arcabouço cultural, tornamo-nos com facilidade presas de um contexto adverso, sem maior consciência do desconhecimento que fragiliza nosso poder de discernimento e de ação transformadora. É como se olhássemos para o mundo que nos cerca e apenas nos percebêssemos inertes em seu interior, numa miragem muito real para ser verdade. O uso político do fenômeno da seca, a exploração da ignorância e o vício de uma sofisticada variedade de tipos de esmola, como ética da miséria, ainda limitam a nossa capacidade de planejar uma relação de convivência equilibrada com a questão da água.
Falar de água é quase uma atitude auto-biográfica. A gente que nasceu no sertão, que conseguiu não evaporar e acabou correndo para o mar, para o litoral, tende a ampliar o estresse hídrico nordestino ao se deparar com o consumo correndo solto pelas casas, ruas, condomínios e praças da cidade. Por toda parte observam-se torneiras pingando, água escorrendo nas calçadas, esgotos jorrando em plena rua, troca desnecessária de água de piscina, lavagem exaustiva de carro e asfalto dispensável impedindo o reabastecimento do lençol freático. A cultura do asfalto impermeabilizador é a versão urbana das queimadas e seu capeamento negro que bloqueia a infiltração indispensável à reposição das reservas aqüíferas subterrâneas.
Muitas dessas pessoas que esbanjam água, jamais raciocinam sobre a relevância negativa dos seus atos. Se podem pagar, entendem que têm o direito de dar o destino que quiserem ao produto adquirido. Acontece que a água, como um bem essencial escasso na nossa região, carece de maior atenção e compromisso com a sua importância em nossas vidas. Vez por outra aparece uma campanha publicitária oficial alertando para o problema. Mas, como normalmente ocorre, essas campanhas não empolgam porque são distantes, frias. A mensagem é apenas tecnicamente bem formatada e parece que não é com a gente. Não rola, não ioniza. O fato de serem peças soltas, de veiculação dispersa, também contribui para a baixa assimilação.
Essa coexistência dos princípios de indispensabilidade e de desperdício, representada no desejo edipiano de morte, esconde e inibe nossa capacidade de administrar o conflito da água de modo compartilhado. A compreensão ecológico-social do tema põe em risco muitos interesses da minoria que obtém vantagens especiais com a ignorância da população. Um processo de conscientização para a gestão coletiva das águas influenciaria diretamente na utilização dos açudes privados construídos com dinheiro público, na normatização transparente de qualquer negócio envolvendo água, no controle, equilíbrio e desconcentração do direito de usufruto dos seus benefícios e na expansão agroindustrial que compete desigualmente com a sede dos excluídos.
A falência da economia rural nordestina apresenta na história das águas boas referências de vergonha cultural. O retrato da região poderia ser produzido a partir da nossa relação com a água. As barragens dispendiosas e rasas, com extensos espelhos líquidos para a fácil evaporação, geralmente são vistas acompanhadas do aproveitamento ineficaz das suas margens. As que servem para perenizar leitos secos de rios, conseguem irrigar algumas terras de jusantes sem expressividade. Pode-se falar de acanhados e confusos projetos de piscicultura, de pólos agrícolas caríssimos e quase sempre mal administrados, e até de badaladas transposições e sistema de interligação de bacias, mas, na realidade, essas ações ainda não integram a história do desenvolvimento da maioria da população.
É lógico que tantos projetos terminam deixando sobras para a periferia humana. Acesso à parte dos produtos sem qualidade para exportação, espaço para a venda de mão-de-obra barata e um ou outro apoio de infra-estrutrura. Áreas de grande produção como as do Vale do rio São Francisco, elevam nosso orgulho de habitar uma região tão privilegiada por sua capacidade de fotossíntese e trabalho produtivo. Vê-se que é possível, desde que percebamos o valor e a condução social dada ao destino das nossas águas. Enquanto os agrotóxicos, os herbicidas e outros defensivos agrícolas contaminarem as reservas de subsolo, os esgotos domésticos e industriais transportarem poluentes químicos e nossas lagoas cheirarem a óleo de jet-sky, não há projeto, por mais mirabolante que seja, capaz de resolver nossos problemas.
Qualquer desenvolvimento começa dentro das pessoas, com seus desejos, habilidade de aprendizado e capacidade de produção. A questão da água no Nordeste brasileiro, deveria orvalhar nossos sonhos, respeitando o hábito do banho por prazer da nossa herança indígena. Teimo em me perguntar sobre os caminhos que deveríamos percorrer para alcançar esse estado de vivência saudável no mundo das águas parcas. De uma forma ou de outra, perguntar já faz parte do processo de esclarecimento. Ao tomar banho, procuro imaginar todo o percurso feito pela água e todo o esforço das pessoas que possibilitaram sua chegada ao chuveiro que me molha. Tem outro frescor.
Tenho paixão por água. No sertão de Independência, onde nasci, sempre foi proibido negar água. Pouca que fosse, sempre podia ser dividida com quem tivesse sede. Quem tinha um poço, tanque, cacimbão ou mesmo um pequeno açude, abria as porteiras para os animais cujos donos não tinham como dar de beber. Para o consumo de casa, a tarefa da meninada era abastecer os potes. Ali a água dormia e no dia posterior podia ser saboreada em toda a sua refrescância. Carregávamos água de carrinho feito de forquilha, um eixo com duas rodas de madeira, uma tábua perpendicular servindo de direção e um prego “Cabral” para passar a corda que segurava a lata de querosene de vinte litros. Os maiores carregavam água em galão, composto de um pau horizontal sobre os ombros, com duas cordas nas extremidades para suportar as latas em equilíbrio.
Com a morte de muitos riachos, o aterramento de lagoas, a desertificação, a redução das chuvas, o aumento do calor e a priorização da água para a irrigação, essa brincadeira funcional entrou em fase de desaparecimento. Quando as barragens entram em colapso, os povoados e cidades do interior passam a ser fornecidos por carros-pipa. A guerra é outra e passa por distinções eleitorais, brigas de rua e ágio na compra da água. Uma luta imediata, sem perspectiva de meditação. Gente com sede, com fome, querendo escapar. O cuidado com a retenção da água em cisternas nos momentos de chuva é quase inexistente. Todos os milímetros contados pelos medidores desaparecem de repente e as pessoas voltam para a fila do pipa.
Lembro do nosso olhar perdido entre nuvens carregadas de um céu azul-chumbo quando os aviões faziam nucleação artificial. Saíamos para as calçadas para ver o bombardeamento das nuvens cheias que insistiam em não desfiar. A desinência social do banho de chuva aflora laços de simpatia, nivela posições hierárquicas, quebra o gelo dos carrancudos e enche as ruas de humor e alegria. Pensando bem, não há o menor sentido em punir o realismo do desejo com a prática absurda do desperdício. Nós, nordestinos, temos a obrigação de fazer uma dessalinização cultural e passar a servir de exemplo para a crise de água doce e potável que ameaça o futuro do planeta. Antes da invasão dos mananciais da amazônia e do degelo das calotas polares, ainda temos a chance de não seguirmos como sombras definidora dos contornos do sub-desenvolvimento insustentado. Estamos no limiar do risco e a água está por um fio.