A antifesta do futebol
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 06 de maio de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Pensando sobre a invasão do gramado da Arena Castelão no domingo passado (03/05), logo após o final da partida do jogo entre o Ceará 2 x 2 Fortaleza, resultado que evitou o pentacampeonato estadual do atual Campeão do Nordeste, procurei entender o que poderia haver nesse misto de vandalismo com pancadaria para além do estigma das torcidas organizadas.

O torcedor metido nesse quebra-quebra é alguém movido por angústias sociais e culturais desestruturantes, alguém modulado intensamente por mensagens sinalizadoras de que não vale mais acreditar em nada nem em ninguém, alguém a quem ainda só resta acreditar no seu time, como resto de ilusão.

Ganhando ou perdendo, esse torcedor entra em transe histérico e perde referências individuais e coletivas que já não tem mais, interrompendo resquícios de consciência de ser social para agir como membro aflito da multidão. O gramado invadido é a dominação do território da ilusão em um poderoso derivativo do caos que lhe tira da existência genérica para uma verdade do prazer, do poder de quebrar, de comemorar pelo avesso.

Com a ação chegando antes de qualquer valor, em denso gozo da ausência de sentido para conceber uma vitória ou uma derrota, o torcedor recebe oxigênio no vácuo de sonhos em que se encontra. Na hostilidade da ocupação do campo ele se sente parte do espetáculo, com direito a ser televisionado e comentado num quase regozijo que só pode se realizar na violência.

No efeito prolongado, decorrente da sua dissolução de torcedor em um avatar de automatismo irrefletido, ele se sente livre em choque de força psíquica no fluir e refluir da não-pessoa. Com os dentes de fora, bicho acossado, protagoniza o filme do rancor aos aplausos do próprio discurso interno em seu dramático ato de agressão ao esporte, seu libertador.

Sem qualquer intuito de defesa das pessoas que cometem esse tipo de ato condenável, procuro observar o torcedor dito baderneiro como parte do dano da suspensão da ordem de uma realidade de artificialismos, supérfluos, excessos de referências de corrupção constituídas, ostentações e indiferença tão comum no comportamento deformado de grande parte das nossas elites degradantes e degradadas.

O campo, como palco internalizado na celebração da própria negação da conquista, proporciona interpretações que necessitam ser matizadas, tendo em conta aspectos voltados ao que o fato real teria de benefício como criação de mito de pressão e influência no desespero do gol do título nos acréscimos. No lugar da bola, e também fora do estádio, o que se vê é o rolar de impulsos recalcados pelas atrocidades da pouca vontade política e da superabundância de enganosas ofertas de felicidade.

A continuar assim, as arquibancadas dos estádios tenderão a perder a função de proximidade que proporcionam, cedendo mais e mais espaço aos sofás dos torcedores que pagam ingressos eletrônicos para transmissões televisivas. Pela ótica do custo-benefício, talvez seja bem mais em conta para os clubes e federações jogar com arenas fechadas e cabines de imprensa substituídas por câmeras seguras e drones.

O futebol tem a inexplicabilidade das paixões. No Brasil, o torcedor se sente traído pelos cartolas, que resolveram acabar com a grandeza dos nossos times, transformando o país em mero exportador de adolescentes promissores. Comparando com a economia dos frigoríficos, é como se tivéssemos passado a ser fornecedores de pintos para, somente tempos depois de consumidos em times do exterior, alguns retornarem como galos velhos, de carne dura, crista caída e já sem esporão, para ciscar em nossos terreiros.

Temos vários exemplos dessa situação lamentável. Dentre os mais emblemáticos, dá para facilmente citar o “Imperador Adriano” e o “Ronaldo Fenômeno”, cada qual com seus disfarces e desserviços de falsos ídolos, prestados à infância e à juventude brasileiras. No meio dos descarados, um dos mais sinceros é o Paulo Cézar Caju, tricampeão do mundo na Copa de 1970, que vendeu a medalha e a réplica em ouro da taça para comprar cocaína e consumir até definhar.

Com os clubes falidos e as crianças e jovens preferindo torcer pelas equipes europeias, não há como escapar da frustração evocada de um desbotado passado de glórias. Exportamos jogadores e estamos começando a importar técnicos. Nossos campeonatos são feitos com regras viciadas, sempre favoráveis a um cartel de cartolagem. A seleção de jogadores da CBF usa atrevidamente o nome de Seleção Brasileira para a sua vitrine de ofertas de atletas, sem o menor constrangimento.

Some-se o aviltamento do nosso futebol com o da política e podemos começar a entender os motivos de gritos de alegrias virarem urros em pancadarias nos estádios. Torço pelo Ceará, estava no Castelão e vi pedaços de cadeiras e sinalizadores acesos jogados contra a trave do goleiro alvinegro, diante de uma arbitragem atabalhoada, sem controle da partida. Cada ato de violência praticado ali era um passo para o orgasmo do risco e para a adrenalina do perigo. Antes de isso ser antidesportivo, certamente traduz um comportamento antissocial.